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sexta, 19 de dezembro de 2025
Memória São-carlense

O tempo em que conheci a acolhedora “Cidade Sorriso”

08 Fev 2019 - 07h00Por (*) Cirilo Braga
O tempo em que conheci a acolhedora “Cidade Sorriso” - Crédito: Acervo FPMSC/Alfeo Rohm/Lugar do Trem Crédito: Acervo FPMSC/Alfeo Rohm/Lugar do Trem

O tempo rodou num instante e eis que neste início de fevereiro completaram-se 47 anos da chegada de minha família a São Carlos.

Era 1972 e a opção de meu pai pela “Cidade Sorriso” se deveu certamente à perspectiva de que vivêssemos num lugar àquela altura detentor de um forte parque fabril e muitas instituições de ensino – com o requinte de abrigar universidades como a federal, recém implantada, algo significativo em termos de olhar para o futuro.

O tempo sombrio para a vida nacional em termos históricos destoava da claridade e das surpresas da vida doméstica, o universo do garoto de oito anos que eu era, fã da Vila Sésamo e do festival de desenhos da TV e seu refrão “no nosso mundo tudo é novo e colorido”. Contraponto à estranha frase vista nas ruas: “Brasil: ame-o ou deixe-o”. Era o ano do Sesquicentenário da Independência do Brasil, repleto das cores verde e amarela.

De mala e cuia como se diz, ancoramos na rua Padre Teixeira nº 2202, ali perto da Escola “Dr. Álvaro Guião”, bem no centro da cidade.

Os sonhos não eram muitos, embora fôssemos uma versão daqueles antigos seriados de TV: nove pessoas e uma fantástica fauna que incluía gatos, cachorros, passarinhos e até frangos que passaram uma temporada no porão da casa.

Uma miscelânea de gostos musicais, sabores, hábitos e regras não escritas. Agora eu sei que adotávamos o lema dos Três Mosqueteiros, “Um por todos e todos por um”. O que de certa forma era extensivo aos amigos que liam ao pé da letra a frase da canção de Roberto Carlos: “Janelas e portas vão se abrir pra ver você chegar”.

São Carlos para nós, vindos de Boa Esperança do Sul, era o quadrilátero em torno da escola “Dr. Álvaro Guião”, na época, “Instituto de Educação”. No bolso do meu uniforme havia a inscrição “CPA do IEE”, que viria ser Curso Primário de Aplicação do Instituto de Educação Estadual. Onde se misturavam alunos vindos de Santa Eudóxia e familiares do deputado Ernesto Pereira Lopes, então presidente da Câmara Federal. (Em outubro daquele ano, Dr. Ernesto hospedou em sua fazenda o presidente da República, General Emílio Garrastazu Médici, que acenou para o público ao desfilar na avenida a bordo do carro oficial).

O prédio da escola “Dr.  Álvaro Guião” está preservado, mas as flores já não existem como existiam nos canteiros fronteiriços, hoje separados da rua por uma grade. O vandalismo parecia seletivo, pois poupava as plantas como o amor-perfeito nos canteiros, mas pichava o busto do patrono. O tema de minha primeira crônica, publicada no extinto jornal “O Diário”, sete anos mais tarde, condenaria os rabiscos pichados no prédio da escola e no busto do patrono. Algo um tanto conservador para um jovem, mas se tratava de causa nobre, como notou o professor Carlos Rodrigues Sampaio, colunista do jornal.

No entorno de onde morávamos, ao lado do consultório de médicos famosos, como Dr. Salvador Prantera Júnior, até hoje por ali, havia escolas, supermercados, igrejas, sorveterias e bares como a bomboniere Elias, o Bar do Cidão e as sorveterias Kawakami, Romanelli e Polar, além é claro da livraria Moderna. Eu gostava da sonoridade dos nomes das ruas como Aquidaban e Episcopal e do apito das fábricas de tapetes e de conservas que avisavam a hora de tomar banho para ir à escola. Chamavam a minha atenção a beleza da Catedral, o chafariz da praça logo em frente, o trânsito na Avenida São Carlos de mão dupla, o túnel subterrâneo de acesso ao Mercado Municipal, o cheiro de café das torrefadoras na região da baixada, as floreiras instaladas nas esquinas e tantas outras coisas.

Era um tempo em que Benvindo assobiava para a revoada das pombas na praça onde Zé Pintor exibia sua arte nos cartazes do Cine São Carlos. E a gente ainda podia chegar e partir de São Carlos nos trens da Fepasa, ou então, como hoje, nos ônibus das empresas Cruz e Cometa. Na época, à falta de uma estação rodoviária, as empresas mantinham suas agências de ônibus e pontos de embarque e desembarque na rua 7 de Setembro; a Cruz defronte à Câmara e a Cometa onde hoje está o Café Dona Júlia.

O tempo passou, mas a região da rua Padre Teixeira traz a nostalgia de quando a região central tinha a paisagem e a rotina de um bairro em que os moradores conviviam e era possível conhecer figuras como Doutor Álvaro Giongo e Rubens Desiderá, personagem estimadíssimo e a quem meu pai contava algumas de suas anedotas de produção própria. Já aposentado da rotina de escrivão de Polícia, o velho tinha uma incrível capacidade de analisar o comportamento das pessoas. Por isso criava as histórias, piadas e lendas que contava na esquina, sem saber que anos mais tarde isso seria chamado de “stand up comedy”.

Aquele microcentro da cidade era um solo fértil para se divertir com os amigos e recém-chegados às cercanias da Padaria Perez do Vado e do Manoel. Éramos fregueses habituais, como também da então mercearia de Mário Dotto e dos recém-inaugurados supermercados Jaú Serve e Jardim 8. A região concentrava o prédio mais alto da cidade, o edifício São Carlos, uma curiosa fábrica de véus e grinaldas, o estúdio fotográfico Ditúlio, a sede da maior construtora da cidade, a Arquitécnica, e moradias de dirigentes da CBT, então no auge de sua produção de tratores “made in Brazil”. Ver o movimento diário dos veículos “Papa Filas” Fenemê de transporte dos operários estacionados na avenida era outra atração.

Os anos 70, vividos naquele espaço nos ensinaram a gostar da São Carlos tradicional. A que apreciava lavar as calçadas, reclamar do IPTU e da “carestia”, ler as colunas sociais com religiosa frequência e se encontrar no supermercado ou numa fila qualquer (elas se formavam principalmente para comprar carne, produto escasso). A fila era uma espécie de Facebook, onde se colecionavam amigos ocasionais.

O passar dos anos trouxe transformações e a cidade ganhou mais carros e semáforos nas ruas, escritórios no lugar de moradias, edifícios onde existiam casarões como o do Joinha (Winston Monteiro Ricetti); self-service onde eram mercearias, como a do Quatrocchi. Ah, sim: a atual padaria na esquina das ruas São Joaquim e 15 de Novembro, onde hoje vejo meus amigos Paulo e Sérgio Keppe está no lugar do instituto de beleza da dona Lucia. O Edifício Rosa de Prata continua igual e ajuda a não desfazer o elo com outra época, como a presença ainda de antigos vizinhos como dona Marola.

Não se diga que o trânsito de veículos ficou pior na região, pois eram comuns as colisões e atropelamentos como os que vitimaram o jornalista Totó Fiorentino e dona Pasqueta, a senhora que estava sempre acompanhada de seu poodle.

Quase 50 anos depois, lembrar detidamente do primeiro dia em São Carlos soa mais ou menos como se fosse possível a alguém recordar do dia em que nasceu. E da música que tocava: “Without You”, de um cantor chamado Harry Nilsson, que ouvi outro dia bem longe de casa. “I can't live if living is without you”, dizia.

Cruzando as ruas do velho quadrilátero, claro, alguma coisa acontece no coração e no seu compasso curiosamente não é a nostalgia que bate. É a sensação clara de que homens e cidades se traduzem no que é efêmero e também no que permanece. A ligá-los está o tempo, essa inescapável abstração tão viva e tão repleta de transformações e de surpresas.

A seu modo, de certa forma, a cidade incorpora a estrofe final do poema de Thiago de Mello: “Mudar em movimento, mas sem deixar de ser o mesmo ser que muda. Como um rio”.

(*) O autor é cronista e assessor de comunicação em São Carlos  (MTb 32605) com atuação na Imprensa da cidade desde 1980. É autor do livro “Coluna do Adu – Sabe lá o que é isso?” (2016).

Esta coluna é uma peça de opinião e não necessariamente reflete a opinião do São Carlos Agora sobre o assunto.

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