sexta, 29 de março de 2024
Memória São-carlense

Jornadas esportivas do rádio nos tempos do “Lobão”

23 Nov 2018 - 07h00Por (*) Cirilo Braga
Jornadas esportivas do rádio nos tempos do “Lobão” - Crédito: Arquivo Digital FPMSC Crédito: Arquivo Digital FPMSC

Bola com Waldemar Zanette, pelo círculo central. Passa para Roberto Colucci, que dispara pela ponta direita. Tabela com Pedro Eussilles.Dribla o lateral, cruza para a pequena área. Lá está Antonio Walter que sobe mais que o zagueiro e cabeceia. O goleiro rebate e Marcio Alvarenga emenda para estufar as redes. “Gol, que felicidade! Esse time é a alegria da cidade”.

A jogada poderia ser uma triangulação entre Maurício Carlos, João Carlos Fiochi e Marcius Milori. Ou um uma arrancada do Zé Luis Finocchio para a conclusão de Li Penteado, Tarciso Manso, Israel de Oliveira, Cardoso Natal. Ou então uma linha de passe de Luppi, Candiano e Bibi Marotti. Sob o comando dos treinadores Jamir Schiavone e Rui Cereda.

Não. O Grêmio Esportivo São-carlense nunca os teve como atletas ou técnicos. Mas no radinho de pilha sempre colado ao ouvido de alguém sentado ao meu lado na arquibancada do Luisão, eram decisivos na primeira metade dos anos 1980. As palavras davam força e vida ao imaginário coletivo.

Nem é exagero dizer que as narrações e comentários ouvidos nas emissoras AM da cidade nos idos tempos gremistas eram diretamente responsáveis pelo batimento cardíaco dos torcedores. Transitando ali, na linha divisória entre desencanto e êxtase, ira e calma, grito e silêncio. Algumas vezes, o pré-jogo ? ouvido pelo árbitro da partida sintonizado no rádio do carro durante o transporte até o estádio ? antecipava o clima que o aguardava. “Esse juiz não é aquele?” – alguém indagava.

Que tipo de magia seria capaz de reunir uma multidão de senhores sob um sol escaldante (senegalesco, na definição dos cronistas), num domingo qualquer?

Acaso não havia outra opção de lazer? Talvez não houvesse. Rios com peixes ficam longe da Vila Prado, o truco no bar da Rua Larga, seria corriqueiro demais; um churrasco com a parentada, idem. O futebol não. A cada partida uma nova epopeia ditada pelo incerto. Quando a bola rola, só mesmo os deuses dos estádios saberão o que virá.

No hiato de noventa minutos entre um apito e outro do “homem de preto” ou “sua senhoria”, a vida inteira se abstraía no rumo da bola, guiada pelo ânimo dos locutores e comentaristas -, mais do que pelos pés de jogadores da então “divisão intermediária”.

O “derby” radiofônico de São Carlos no final dos anos 1970, início dos 80, reunia a equipe “Eclética” e a “Titular” e nos convidava a todos a beber no mesmo cálice, não propriamente da paixão clubística, mas do extravasar da semana que haveria de terminar entre saquinhos de amendoim, sorvetes de abacaxi e a bola no fundo da rede da meta adversária.Completava o cenário o vozeirão do rapaz com jeito de cantor de soul music, que passava pela arquibancada com um valioso carregamento de salgadinhos, anunciando imperativo: “Pipoca, pururuca, biscoito! Vamos comer as coisas!”

Comer as coisas, olhar o jogo sem perder nenhum lance, e ficar ligado no radinho de pilha. Não necessariamente nessa ordem.

O rádio esportivo são-carlense revelou nomes como José Italiano, nosso mais notório profissional do ramo, que tempos antes fora brilhar nos microfones da capital. Não bastava acompanhar a partida, era preciso ser guiado pelos radialistas, que às vezes nos mostravam uma partida muito diferente daquelas que nossos olhos viam. A bola chutada pelo alto, bem longe da meta era a mesma que viajava rasteira perdendo-se pela linha de fundo. A ordem dos lances não alterava o placar.

Experimente hoje, caro leitor, tirar o som da TV numa transmissão esportiva. O jogo perde terrivelmente em emoção para ganhar uma objetividade intolerável. Mestres do jornalismo dizem que uma imprensa puramente objetiva seria como uma construção de fórmulas matemáticas; a frieza dos cálculos chutaria para escanteio todo encanto, espalmaria para a linha de fundo o interesse do público.

Havia curiosidades na rotina de torcedor, sempre ali na geral. Onde certa vez fiquei com medo de apanhar quando na empolgação do entusiasmo do narrador, pulei sobre uma poça d’água na comemoração de um gol, espalhando a água enlameada nas costas dos vizinhos do degrau de baixo. Ufa, o povo estava “zen” naquela tarde.

Certo dia, ao chegar ao estádio municipal,com a partida já rolando, deparei com uma velhinha que espiava o jogo pela fresta do portão lateral. Não resisti a olhar também, e o que se podia enxergar era apenas uma faixa do círculo central, onde a bola passava rapidamente. Guiava-se pelo alarido da torcida, que por sua vez era guiada pelo alarido dos cronistas esportivos. “É hora do teeeeempo!” anunciava Antonio Walter.

O jogo de futebol vira metáfora da vida quando permite que se veja o que se quer ver.

Não fui a Taquaritinga em 1982. Livrei-me de estar no teatro de operações da “guerra”, mas acompanhei minuto a minuto cada lance daquela “Guernica caipira” e seus desdobramentos. Nada menos que 53 ônibus saíram de São Carlos levando a torcida do “Lobão” na histórica invasão de Taquaritinga para apoiar o Grêmio contra o tradicional CAT. O jogo em si foi completamente eclipsado pela batalha campal que ganhou as páginas da grande imprensa no dia seguinte.

Tempos depois, a “Equipe Eclética” voltou lá para transmitir uma partida entre o Clube Atlético Taquaritinga e o Santos Futebol Clube. Com a cautela de se transportar num carro com placas de Inúbia Paulista, todo mundo paisano, para manter-se incógnito, discrição total. Até que um gaiato gritasse: “Olha lá o pessoal de São Carlos!” Adrenalina. Zanette, Cereda, Candiano e o santista Wanderley de Almeida se sentiram como eu naquela tarde da poça d’água. E igualmente puderam respirar tranquilos. Os torcedores estavam “zen”.

Outras partidas lendárias tiveram final feliz, como aquela contra a equipe do União Agrícola Barbarense, quando o centroavante Roberto Biônico venceu a tempestade e fez o gol que assegurou a subida do Grêmio para a Série A-1 em 1989. Ninguém esqueceu e muito menos o dirigente Sérgio Piovesan, a multidão que acompanhou as finais, no mesmo ano em Limeira, quando o Grêmio levou mais de 3 mil pessoas ao estádio Major Levy Sobrinho, o Limeirão.

A crônica esportiva sempre teve razões que a razão desconheceu. Das histórias da “Maria Gorda”, o pesado equipamento que as equipes de esportes levavam em suas turnês pelo interior afora, às hilárias passagens, como a do comentarista que perdeu o “detalhe do gol” porque se distraiu ao ver passar uma moçoila, e quando chamado pelo narrador, não deixou a bola quicar: “O detalhe, meu amigo, é que foi um gol de Copa do Mundo. Uma pintura!”

O folclore do ofício é povoado de lendas verídicas, como as histórias de partidas imaginárias, narradas sem que o locutor a assistisse, de placares invertidos, de comentaristas que depois de um acidente voltaram para casa com uniformes de jogador. De fios cortados, telefones mudos e tribunas balança-mas-não-cai.

As “artes ludopédicas” como define o jornalista Xico Sá são, por natureza, efêmeras, mas a memória do torcedor-ouvinte haverá de guardar o “detalhe do lance” e resgatar dos arquivos empoeirados da lembrança, até mesmo a entrevista do “melhor em campo”, agraciado com uma “deliciosa pizza”.

Nos melhores tempos os atacantes do velho Grêmio ?  que atendiam por Ditão, Silvano, Carlos Roberto, Bráulio e tantos outros nomes ? protagonizavam jornadas memoráveis. E se não fossem, se tornariam memoráveis no entusiasmo de nossos locutores que saíam para o jogo.

Encontro o personagem do início deste texto, Waldemar Zanette, que prolongou sua carreira até pouco tempo atrás, quando tudo estava como dantes no quesito dificuldades para a crônica esportiva do interior.

Zanette recorda as dificuldades para obtenção da linha telefônica para transmissão de jogos. Quando a partida acontecia numa região em que era possível receber o sinal da emissora, não havia problema. Mas quando o jogo ocorria numa cidade distante, para saber se tudo estava nos conformes era preciso ir até um posto telefônico e ligar para o estúdio da rádio. Ou então era contar com a sorte e transmitir os jogos sem saber se a narração estava chegando ao ouvinte. Só seria possível descobrir se tudo correu bem ao voltar para São Carlos. Se o futebol era uma caixinha de surpresas, transmitir um jogo não seria diferente. Em pleno século 21, há quem permaneça às turras com a dificuldade no quesito linha telefônica.

Não importa se nas grandes competições ou nos torneios com equipes do interior, a história se repetirá. Narradores, repórteres e comentaristas permanecerão na lembrança dos torcedores quando a memória recua a tempos vitoriosos. Todos eles, de certo modo, conhecem a verdade da frase do saudoso cronista Armando Nogueira: “Quem acompanha futebol passa os domingos brincando no estádio como as crianças de Montherlant, que ficam o dia inteiro na praia a construir castelos de areia, sabendo que a maré da noite destruirá sua obra”.

O mesmo Armando lançaria a pergunta definitiva: “Que seria de ti, de mim, que seria de nós, amigo, o domingo sem a comovente mentira de um gol? (...)”

(*) O autor é cronista e assessor de comunicação em São Carlos  (MTb 32605) com atuação na Imprensa da cidade desde 1980. É autor do livro “Coluna do Adu – Sabe lá o que é isso?” (2016).

Esta coluna é uma peça de opinião e não necessariamente reflete a opinião do São Carlos Agora sobre o assunto.

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