sexta, 26 de abril de 2024
Memória São-carlense

O comércio e serviço de outros tempos

22 Fev 2019 - 07h00Por (*) Cirilo Braga
O comércio e serviço de outros tempos - Crédito: Acervo FPMSC Crédito: Acervo FPMSC

A recente crônica destas Memórias, intitulada “Bares de outras épocas” incentivou os leitores a rememorarem pontos de encontro já desaparecidos do cenário urbano de São Carlos, mas ainda vivos na lembrança afetiva de muitos.

Da mesma forma, as casas de comércio de tempos atrás – que não mais existem - davam identidade a uma cidade bem diferente de agora. Uma cidade mais provinciana, sim, porém facilmente reconhecível pelo que nela havia de singular e revelador do modo de vida de seus habitantes.

Se atualmente é muito mais frequente indagarmos “cadê aquela loja que ficava ali?”, por várias décadas muitos estabelecimentos se mantiveram ativos, dando sentido literal à expressão “comércio tradicional”. Onde não faltavam os “fregueses de caderneta”.

A confiança era moeda valiosa na época dos alfaiates, das mercearias, das lojas de roupas, calçados e eletrodomésticos com nomes de famílias locais, quando bordões da propaganda de muitas delas ficavam na cabeça do povo. Em 1968, quando o “Novo Mercado Municipal” foi inaugurado, na “baixada” funcionava uma miríade de lojas de tecidos, mercearias, armazéns e alfaiatarias (tempos das lojas Popular, Casa Carioca e Casa Piovesan).

Outro recorte marcante na história se daria nos anos 1980, quando a Rua General Osório se transformou no Calçadão. Não tardaria para o consumidor começar a sonhar com um shopping center – que só chegou quando os ventos do panorama socioeconômico começaram a soprar definitivamente contra o comércio de rua.

E assim as lojas de outros tempos foram fechando as portas e dando novos contornos ao cenário de um comércio repleto de franquias e empreendimentos de grandes redes. Basta, contudo, alguns minutos de prosa com moradores mais antigos, ou nem tanto, para que as recordações apareçam.

Um letreiro, os produtos, o atendimento diferenciado – tudo se torna fresco na memória de cada um. Pensando bem, quando se lembra de uma casa de comércio, a pessoa traz à mente um período singular de sua vida, por isso tem saudade.

O jornalista Edilson Fragalle me dizia que seu pai passou a vida trabalhando no centro comercial da cidade. Entre 1942 e 2000, Pascoalino Fragalle, “seu Pascoal”, hoje com 90 anos, foi sócio-proprietário, com Ary Rodrigues, da loja Príncipe Magazine, que funcionou na rua General Osório. Ao longo do tempo teve como vizinhos, estabelecimentos como o armarinho Lausanne de Basílio Dibo, a Casa Progresso dos Muszkat, A Casa Leão de Salomão Schevz, A Vencedora dos Amura, a Casa Bichara, dos Damha...

Nos tempos em que cada comprador era identificado simplesmente como “freguês”, assim definido na lei municipal que oficializou a “Semana do Freguês” em 1974, as lojas eram pontos de referência. A Avenida e seu entorno, na área central, e a baixada do mercado eram o território do varejo local.

Nos anos 1970 lá se encontrava a loja Móveis Brasil (onde se levava “o Brasilino de presente”, um boneco símbolo do estabelecimento), e logo ao lado a De Santi Brinquedos. Ainda na Avenida ficavam a Junes Modas, a Farmácia Nossa Senhora da Candelária, as Casas Bernasconi, o icônico Bar do Bogas e as lojas A Triunfante, Voggi e Esportes Ferrari (pioneira na venda de equipamentos esportivos). Na General, as lojas Texidal – cujo anúncio dizia “uma porta larga” -  Hi Fi Discos Maysa, Tudo Bem, Ideal Modas, Jet Color, Sandolândia e a Livraria Iris...Caminhando para o lado da estação lá estava a Paulilloptica do Luiz Paulillo Filho, histórico presidente da ACISC.

Quando em sua mesa no Bar Pistelli Celinho Dibo ainda esboçava criar o time do Para Bola, nas cercanias o cenário reunia, a Eletro Tamoio, a Padaria Caiçara, dos Kabbach,

na rua Geminiano Costa a mercearia dos Irmãos Tuboi, ao lado da Loja Japonesa e, ali perto, a Cooperativa de Consumo, a loja PB Modas e as torrefadoras que disponibilizavam os Cafés Novais, Yara e Ouro Brasileiro, espalhando um aroma inesquecível pelo território onde trabalhava o ourives Salvador Trofino. Na esquina da Catedral estavam A Boa Compra(no antigo prédio residencial da família Cury) e a Foto Altino. E na ladeira, a Brasil Cine Foto, de Thomaz Ceneviva.

Meu irmão Eugênio, então sapateiro, vinha de Boa Esperança para comprar peças de couro para solado de calçados na loja do Patrizzi, na Praça Santa Cruz, ao lado da Padaria Caruso. Nos primeiros anos em São Carlos, ainda criança, eu tinha medo de tomar injeção na Farmácia São Paulo, onde o farmacêutico Romualdo Pozzi ironizava meu temor. “Ora, um homem desse tamanho não pode ser cagão”, dizia entre gargalhadas.

Os superlativos dominavam os nomes de lugares exíguos, como O Sucão, na Avenida ao lado da elegante Casa Maricondi e O Discão, logo abaixo. A linha minimalista era também representada pelo bar O Beco, não muito longe da tradicional Gullo Magazin e da Livraria Moderna. Eram tempos de comprar material escolar também no posto do MEC, vizinho ao prédio da Biblioteca Municipal, na rua 9 de Julho.

Na esquina da Avenida com a rua Sete de Setembro defronte à agência da Viação Cometa e da banca Vamos Ler já não estava o Bar São Paulo, mas a farmácia Droga City. Na mesma época, pontificavam na Avenida o Palácio das Borrachas e, na rua Padre Teixeira, na Vila Nery, a pioneira Lavanderia Hollywood, próxima ao Bar Sansão.

Isso foi bem antes do grande sucesso da livraria Dom Quixote da Sonia Russo, na rua Marechal Deodoro, e dos áureos tempos dos pastéis da Tomiko, na rua Dona Alexandrina.  No terreno das iguarias identificadas pelo nome ou apelido de suas produtoras, é impossível não citar Emília Botta Constanzo, dona Miloca, a artista dos bolos, falecida em 2014 aos 90 anos.

Quando já havia erguido o edifício Racz Center, o empreendedor imobiliário e artista Zezinho Santilli criou a boate Manhattan, na Avenida Getúlio Vargas. Foi lá que pude conhecer pessoalmente o grande cantor são-carlense que ele foi - conhecido como “A Voz de Ouro”.

Nos anos 1960 o perfil interiorano se mantinha, embora São Carlos já  possuísse status de cidade média, diferente do longínquo começo do século 20, quando as maiores casas de comércio locais atendiam por Loja Violeta – célebre por disponibilizar o perfume Channel - ,  casas Farani, Zambrano, Souza e a lendária Casa Arruda (mercearia na rua Conde do Pinhal onde se formou o “caldeirão” reunindo para tertúlias autoridades e intelectuais, como Major José Inácio, o juiz Otaviano Vieira, seu cunhado Euclides da Cunha, Amadeu Amaral e outros).

Era possível reviver os anos dourados das alfaiatarias em ateliês de profissionais como Buzzini, anunciante do almanaque da cidade em 1969, onde também figuravam a Administradora Predial São Carlos, de Emilio Manzano, na rua Dona Alexandrina, o Auto eletrico Dorival, na rua Santa Cruz, a Tipografia Central, na rua sete de setembro. A mecânica Sovoks, do Bertoldi, a Casa de Carnes Santo Antonio, do Parreli e outros tantos.

O advento dos televisores em cores demandava oficinas de conserto dos aparelhos, especialidades da Eletrotécnica Apollo do Vaccare e da oficina de Valdemar Oliveira. (Num futuro não distante a demanda seria pelos reparos em videocassetes, constantemente rebobinados para os filmes retirados em videolocadoras como a Omni Video e a RubensVideo).

A Casa Radio-Luz, do Missali com matriz na rua Dona Alexandrina e filial na Avenida São Carlos pontificava nos anos 1970 no comércio de materiais elétricos e artigos para iluminação. A indústria R. Camargo da família de Antenor Rodrigues Camargo, anunciada como “Impar no Ramo”, produzia e vendia móveis em fórmica e carinhos para sorvetes.

O finado supermercado Dotto era ainda uma mercearia quando estavam em seus melhores tempos o Fazenda Hotel São Carlos e o Hotel Estância Suiça, que acabou emprestando seu nome ao bairro Vila Elizabeth. Um leitor desta coluna me dizia que em suas mais remotas lembranças de infância estava a indústria e comércio de móveis Moyster, recordando-se de um incêndio lá ocorrido no final dos anos 70. Naquela década, a concessionária de veículos Grilli trazia para a cidade o show do piloto Carlos Cunha, que na Avenida pilotava carros em duas rodas e fazia manobras espetaculares para delírio de milhares de expectadores.

Se as casas de comércio e mesmo os locais de entretenimento e lazer foram atropelados pela mudança do modo de vida da sociedade – o advento do comércio pela internet, a elevação dos aluguéis e a chegada das franquias – é fato que as lojas do velho “comércio tradicional” ficaram na memória de muitos porque estavam sempre associadas a eventos que alguém nunca esqueceu. Um “reclame” marcante no rádio ou o patrocínio de um programa.

Felizmente há muitas casas comerciais antigas que continuam abertas nos dias de hoje, sobreviventes do tsunami da crise econômica que só no ano de 2017 fez 226,5 mil lojas fecharem as portas em todo o País, segundo levantamento da Confederação Nacional do Comércio.

Nesse panorama, as lojas resistentes formam um elo entre a cidade de outros tempos e a de agora, em que algum esforço precisa ser feito para que o centro comercial sobreviva. É ele, afinal, que torna São Carlos uma cidade única, pulsante – e não só no imaginário e na lembrança de seus habitantes.

Concordo ipsis verbis com o reparo feito pelo cronista Ruy Castro: “Você dirá que as cidades ficaram hostis, inseguras, impróprias para uso humano, e que bom que a tecnologia nos permite certos confortos. Eu diria que exatamente por isto deveríamos lutar pelas cidades - por cada cidadela de delicadeza que elas ainda comportem”.

(*) O autor é cronista e assessor de comunicação em São Carlos  (MTb 32605) com atuação na Imprensa da cidade desde 1980. É autor do livro “Coluna do Adu – Sabe lá o que é isso?” (2016).

Esta coluna é uma peça de opinião e não necessariamente reflete a opinião do São Carlos Agora sobre o assunto.

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