sexta, 26 de abril de 2024
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A saúde mental das crianças em tempos de pandemia

22 Fev 2021 - 17h57Por Anaísa Mazari
A saúde mental das crianças em tempos de pandemia -

Afirmar que a pandemia tem causado instabilidades consideráveis na saúde mental de todos parece até redundante, considerando o prolongamento desse crítico estágio coletivo de mudanças, incertezas, agravamento do contágio, colapso do sistema de saúde, afetamentos múltiplos na economia. Se a fase já é um desafio ímpar para os adultos, que teoricamente apresentariam maiores ferramentas para se estruturarem emocionalmente para o atravessamento do período, imaginem então como essa instabilidade atinge as crianças que dependem dos adultos para se organizarem emocionalmente.

Em se tratando das crianças, seres em desenvolvimento no contexto de uma pandemia, no ano anterior, muitas crianças perderam o importante momento de ampliação da socialização através dos ambientes escolares e de lazer. Algumas crianças tiveram, ou o contexto escolar abruptamente suprimido da rotina, ou sequer puderam ingressar presencialmente na importante experiência escolar que contribui significativamente para o desenvolvimento das habilidades cognitivas, emocionais, afetivas e de construção de convivência em sociedade. Ao mesmo tempo, foram obrigadas a lidarem com métodos de ensino à distância, com pouca familiaridade, sendo um desafio até mesmo para os adultos acompanharem essa forma de estudo. O isolamento social para as crianças é uma tarefa ainda mais complexa, já que neste momento da vida, naturalmente, a orientação do desenvolvimento infantil se volta para a descoberta do mundo, novas experiências para além do contexto familiar. E viver esse momento entre quatro paredes na maior parte do tempo certamente se configura mais um estressor que demanda recriação para o atravessamento que minimize os impactos emocionais. Ainda que haja casos em que o isolamento não esteja sendo cumprido com rigores, a insegurança perfaz o contexto mesmo com a negação da pandemia e seus percalços, e as crianças captam toda essa instabilidade de forma muito mais sensível. Podem não compreender a pandemia como os adultos, mas sentem todas as mudanças de forma bem menos defendida. Conversar sobre o atual momento da forma como a criança compreende de acordo com sua idade é essencial e tende a diminuir as inseguranças e ansiedades.

Todo comportamento infantil é uma expressão de sentimentos e emoções. Adultos desenvolvem a capacidade de comunicação através da linguagem, algo que para as crianças ainda está em construção. Ou seja, as crianças necessariamente precisam dos cuidados e interação com adultos para compreenderem o que sentem e se organizarem emocionalmente. Daí a importância de contextos familiares que transmitam segurança para que as crianças possam trilhar esse desenvolvimento das emoções de maneira saudável. Dentre os comportamentos mais descritos estão as manifestações de agressividade, instabilidades emocionais, choro fácil, terrores noturnos, sono prejudicado, ruptura de regras, comportamentos desafiadores, regressões como atos de chupar o dedo, enurese e ecoprese, que são os retornos aos hábitos ou episódios de fazer xixi e cocô na cama, por exemplo. São como pedidos de socorro que possuem diversas formas de interpretação de acordo com a história de vida da criança e a dinâmica familiar, mas de forma genérica é possível afirmar que tais atos sinalizam a demanda por proteção e a necessidade de fortalecimento de vínculos entre cuidadores e crianças. Por mais desafiadoras que pareçam tais situações, os adultos são demandados pelas crianças por representarem figuras de proteção para o universo infantil. Ou seja, as crianças confiam nos adultos como figuras potentes para auxiliá-las a organizarem seus sentimentos e precisam disso para se desenvolverem emocionalmente.        

Para o atravessamento do momento, seguem breves orientações:

- Recursos lúdicos e expressivos: a expressão das emoções da criança pode ser constantemente exercitada através do brincar e também das artes, como desenho, pintura, massa de modelar, argila, dança etc. A oferta desses recursos abre para as crianças a possibilidade de comunicação das emoções e sentimentos de forma livre e espontânea. Para uma experiência expressiva ainda mais libertária, prefira tintas a lápis de cor, por exemplo, se a criança gostar. Materiais como a tinta possibilitam “menos controle” da expressão simbólica infantil resultando em maior extravasamento das emoções de forma descontraída e divertida. Dar à criança a liberdade de criar as próprias brincadeiras também fortalece a criatividade e a autonomia.

- Fortalecimento de vínculos: os cuidadores podem fortalecer sobremaneira os vínculos com as crianças se praticarem atividades diversas juntamente com elas. Com a confiança fortalecida, a sintonia entre crianças e cuidadores se torna muito mais natural, facilitando a compreensão das necessidades infantis. Brincar com as crianças, contar histórias, fazer da hora do banho um momento divertido pode ajudar e trazer prazer em meio a tantas dificuldades.

- Quando a criança apresentar comportamentos agressivos: em alguma medida, o isolamento e a ausência do ambiente escolar pode deixar as crianças mais irritadiças e contrárias às regras. Por vezes as crianças precisam extravasar e é importante que tenham seu tempo de colocar as emoções negativas pra fora. Importante aqui é discriminar se esse comportamento já perfaz alguma forma de adoecimento emocional anterior ou transtorno ou se é apenas uma descarga de emoções negativas tendo em vista todo o contexto.É importante dialogar com a criança posteriormente a respeito, estabelecendo acordos e regras. Sinalizando e ensinando que existem outras maneiras de lidar com o que sente, algo muito contributivo para que possa construir outras maneiras mais elaboradas e menos instintivas para lidar com as emoções.

Recomenda-se cuidado para com medidas como agressões e punições similares nesses momentos, já que em longo prazo, na percepção das crianças, pode se estabelecer o significado de que a violência é uma resposta para lidar com os problemas e conflitos ou mesmo pode criar a falsa impressão de que a criança está obtendo atenção dos cuidadores, mesmo que de forma nociva, algo comum nos casos em que os vínculos já estejam fragilizados. Em ambas as situações, o comportamento de agressividade acaba por ser reforçado, quando necessita ser trabalhado de outras maneiras.Se outras formas de expressão forem viabilizadas, a tendência é que o caminho da agressividade não seja tão acessado pelas crianças.

- Regras, limites e rotina: Permanecem essenciais para o desenvolvimento das crianças e para a construção da capacidade de tolerância às frustrações. Evite “voltar atrás” nos nãos. É importante que os limites sejam colocados com consistência e, na presença de mais cuidadores, que haja consenso para que as crianças não se confundam na obediência aos limites. O que pode ser recriado em tempos de pandemia é quais regras priorizar, de quais abrir mão temporariamente e qual tipo de rotina construir neste novo período, mantendo-se as necessidades básicas.

 É muito importante reforçar que perfeição é impossível para o atual contexto. Buscar perfeição em um período que exige diversas adaptações torna-se mais uma forma de comprometer ainda mais a saúde mental de adultos e crianças. Vamos sim nesse período, fazer incontáveis tentativas até acertar as maneiras de lidar com as crianças (e com tudo o mais que a fase pede de mudanças) para criar e recriar um repertório de ações que funcione no cotidiano. Essa construção exige esforço, flexibilidade, paciência, perseverança. Sempre lembrando, ainda, que as demandas se tornam novas a cada fase do processo. E cada cuidador vai achar seus próprios caminhos e ferramentas para atravessar o momento dentro de suas possibilidades. Não hesite em procurar ajuda profissional se julgar necessário.

 

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