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Memória São-carlense: Avenida, o cine teatro que virou estacionamento

12 Jan 2018 - 02h28Por (*) Cirilo Braga
Foto: Arquivo histórico e reproduções do livro "São Carlos no escurinho do cinema" - Foto: Arquivo histórico e reproduções do livro "São Carlos no escurinho do cinema" -

O dia 4 de janeiro de 1984, uma quarta-feira, marcou o encerramento das atividades do Cine Teatro Avenida, localizado na Avenida São Carlos, 1260, no centro da cidade. O prédio foi demolido, pondo fim a uma trajetória iniciada em 24 de janeiro de 1953. Durante três décadas o Avenida foi "o grande xodó dos são-carlenses, verdadeiro templo sagrado da sétima arte", como definiu o professor José do Prado Martins na crônica "Saudades de nossa Cidade" publicada em 2005.

Ali se realizou em 17 de janeiro de 1958 a cerimônia de colação de grau da primeira turma de alunos do Curso de Engenharia, nas Habilitações Engenharia Civil e Engenharia Mecânica da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da Universidade de São Paulo. O então governador Jânio Quadros, paraninfo da turma, não podendo comparecer à cerimônia, redigiu um discurso - "Oração do Paraninfo" - e se fez representar pelos secretários da Fazenda e do Governo, respectivamente, professor Carlos Alberto de Carvalho Pinto e Francisco Carlos de Castro Neves.

Coisas da história de uma sala de cinema com mais de mil lugares, instalada num imponente edifício que nada teve de banal. Ao longo de 30 anos fez parte do cotidiano dos são-carlenses ao exibir clássicos da cinematografia brasileira e mundial, incluindo os da "Sessão Maldita" e abrigar espetáculos teatrais dos amadores locais como Vicente de Arruda Camargo, o Teatro do estudante de São Carlos (Tesc) e shows de artistas como Orlando Silva e Roberto Carlos.

"AS SALAS FERVILHAVAM"

O primeiro filme ninguém esquece. E o primeiro que passou na tela do Avenida, anunciado pelo jornal O "Correio de São Carlos", foi "Ao cair do Pano", com renda em benefício do Educandário, Asilo de Mendicidade Dona Maria Jacinta e obras da Catedral.

No dia 3 de fevereiro daquele ano, outra novidade: a inauguração do palco com a apresentação de "As mãos de Eurídice" com o ator são-carlense Vicente de Arruda Camargo, monólogo de Pedro Bloch.

São Carlos então era uma cidade tranquila, cujos habitantes se orgulhavam do bom clima com o qual os visitantes tinham que se adaptar, pois o célebre e gelado vento sul era uma de suas características marcantes.

Quem viveu a época fez questão de registrar aquela atmosfera, como o cronista Eduardo Kebbe, que morava no entorno da Praça Elias Sales, bem perto dali.

"As salas fervilhavam de pessoas e os cinemas eram o ponto de encontro, lazer e de cultura dos habitantes da cidade", ele relatou. Era um tempo em que bondes e carros e depois os ônibus despejavam os frequentadores à porta dos cinemas, "cujas salas trescalavam a perfume, mercê da presença feminina, enquanto os homens não podiam entrar sem paletó e gravata".

"Tempos bons, ingênuos e deliciosos aqueles em que a programação era farta e diversificada, apresentando 30 ou 32 filmes por mês, havendo dias em que duas fitas eram exibidas numa mesma sessão!" testemunhou o cronista. "E eram filmes para todos os gostos: de faroeste, policiais, românticos, cômicos, de horror - enfim, tudo o que Hollywood, verdadeira usina de sonhos, produzia em larga escala, para emoção e prazer das plateias de outrora". As crianças também tinham vez nas sessões Zig-Zag, aos domingos às 10 da manhã, onde Tom & Jerry eram os astros recorrentes.

CONFORTO DOS ESPECTADORES

O professor José do Prado Martins, na crônica citada no princípio deste texto, recordou que "era comum encontrar no saguão de entrada o Aristeu Favoretto e o Malagutti sócios do cinema; lembro perfeitamente das duas músicas que antecediam a apresentação dos filmes e das luzes coloridas que contornavam o teto. Após as sessões íamos deglutir baurus de carne moída na padaria do Caruso".

Martins admirava as instalações do cine teatro: "De linha arquitetônica ultramoderna para a época, seu projetista preocupou-se com o conforto dos espectadores que buscavam assistir aos seletos filmes exibidos".

Esse seu olhar foi compartilhado por legiões de jovens. Naquele trecho da vida em que as coisas parecem acontecer tudo de uma vez, a adolescência, passamos distraídos pelos "causos" contados pelos antigos e só depois atinamos para o que perdemos. A geração que cresceu nos "anos de chumbo" acabou virando especialista em ver transições. Aquela, da cidade que demolia salas de cinema para pôr no lugar o vazio, era marcante.

Na virada dos anos 70 e 80 do século passado São Carlos era a cidade do Cine São Carlos, do Cine Avenida, do Cine Joia e do Cine São Sebastião que, de súbito, desapareceram, levando o deleite de ver tanta fantasia refletida na tela grande. Como esquecer as imagens e a música do Canal 100 ("Na Cadência do Samba"), que nos colocavam dentro do campo, ouvindo até o som da batida na bola e das redes balançando? Do sufoco de ver "Tubarão" na tela do Avenida? Ou das lágrimas de tanta gente diante de "O Campeão" e "Doutor Jivago"?

Era preciso, pois, aprender na vida real a fala do filme "Houve uma vez um verão", que passou antes da discoteca: "A vida é feita de pequenas idas e vindas. E, para cada coisa que a gente leva conosco, tem alguma coisa que a gente deixa para trás".

VELÓRIO DO CINEMA

Como na canção de Chico Buarque, o tempo rodou num instante e eis que chegou a roda viva carregando o destino pra lá. O destino dos antigos cinemas passou a ser a demolição para dar lugar a estacionamentos, igrejas e lojas comerciais. Não sem o brado retumbante dos que não aceitavam a ideia de que espaços culturais fossem atropelados pela especulação imobiliária.

Na noite daquela quarta feira de 4 de janeiro de 1984, quando o Cine Avenida exibiria suas últimas sessões após 30 anos, entidades estudantis e a Apasc (Associação para proteção Ambiental de São Carlos) organizaram um protesto realizando um concorrido velório na porta do cinema. Na ocasião, o banco Itaú já providenciava a demolição do prédio onde seria instalado o atual estacionamento da agência.

De quebra seria desativado também o Cine Joia na Vila Prado. Um abaixo-assinado que correu a cidade alertava para o problema do desaparecimento de espaços de cultura e entretenimento e apelava à direção do Banco Itaú e aos responsáveis pelo setor de cultura na cidade para que encontrassem alguma solução.

Conforme registrou Marco Antonio Leite Brandão no livro "São Carlos no Escurinho do Cinema (1897-1997)" -  a Apasc argumentava que "antigamente São Carlos era conhecida como Atenas Paulista devido à intensa atividade cultural que existia na cidade. Brevemente seremos Apenas Paulista, pois são muito poucas as atividades culturais que existem na cidade hoje".

A ÚLTIMA CENA

"A gente passou a mocidade dentro do cinema. Saí de lá velho". A frase de Domenico Dagnone, um antigo projetista de filmes, fecha de modo memorável o documentário "Um Século de Cinema em São Carlos", produção de 1998 da extinta Ômega passou em revista às salas de exibição e movimentos do cinema na cidade numa bela e pungente homenagem que faz pensar. Dagnone bateu ponto diariamente no Cine Avenida durante todo o tempo em que o estabelecimento funcionou.

Na crônica "Desligando os projetores", publicada em "O Diário" de 1983, analisando o fenômeno do fechamento das salas que ocorria em cidades do interior do país, Kebbe afirmava que era sinal dos tempos e dos novos costumes: "A poderosa concorrência da televisão, aliada ao fim da época de ouro de Hollywood, acabaram deixando as casas exibidoras às moscas. Hoje, são raras as fitas que geram filas de espectadores. Em contrapartida, tenta-se, atualmente, reativar a frequência dos cinemas, com a cobrança de meia-entrada para todos, isto nas cidades acima de 20 mil habitantes e em dias especiais. Será esta a queima dos últimos cartuchos?"

Kebbe contou num de seus escritos como testemunhou a última cena do velho cinema:

"Olho o relógio: são 21h45 quando se apagam, pela vez derradeira, as últimas luzes do Cine Avenida. O operador Domenico Dagnone põe o chapéu, despede-se dos colegas, vai-se. Há 29 anos ele cumpre o mesmo ritual diário. Mas antes da última sessão do cinema ele me convida para ir até a cabine, onde exibe o aparelhamento que inclui, obviamente, os dois poderosos projetores RCA automáticos. Passa um pedaço de fita para me mostrar o funcionamento da máquina, que lhe é tão familiar. O celuloide desliza a 600 metros por minuto. Há barricas de carvão e uma profusão de chaves elétricas distribuídas pelas paredes. Ao deixar a cabine, contemplo a vasta plateia vazia, que viveu de esplendor e glória retumbantes.  E se apossa de mim uma irracional tristeza e uma lenta saudade inexprimível. Quem diria, 30 anos".

Esta seção tem enfoque na memória coletiva de São Carlos e disponibiliza espaço para relatos e fotos de fatos e locais da cidade em outros tempos. O material pode ser enviado para: memoriasaocarlense@gmail.com.

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