sexta, 26 de abril de 2024
Artigo Rui Sintra

Construindo uma estrada

25 Jul 2020 - 10h44Por (*) Rui Sintra
Construindo uma estrada -

Já relatei aqui aos meus leitores as particularidades de pessoas nascidas e criadas no norte de Portugal, que sempre têm uma resposta pronta. Hoje vou contar uma história verídica passada com um amigo meu, português, engenheiro de obras e especializado na construção de estradas. Esta história passou-se em meados de 1990, na província do Alentejo - sul de Portugal. Muitos portugueses “tiram o sarro” do alentejano, por ser um povo calmo, tranquilo, que sabe muito bem o que quer, que não dá satisfação para estranhos e que trabalha de sol a sol. Contudo, uma de suas particularidades é ter sempre uma resposta adequada ou um comentário oportuno para aqueles que se julgam mais espertos, só porque são de Lisboa ou do Porto, enfim, dos grandes centros cosmopolitas.

Sérgio (nome fictício de meu amigo), foi destacado para chefiar a construção de uma estrada perto da cidade de Mértola, e durante uma semana se ocupou intensamente na medição exata do terreno onde deveria ser construída a via, auxiliado por vários instrumentos característicos desse trabalho. Em um desses dias, um alentejano, montado em uma bicicleta bastante velha, certamente morador em uma pequena vila por onde passaria a nova estrada, aproximou-se vagarosamente do meu amigo e parou observando-o. Segundo Sérgio, o calor, naquela hora do dia (12h00) era abrasador - passaria certamente dos 40 graus. Sérgio não se incomodou por o indivíduo ter parado e ter ficado por mais de dez minutos em silêncio, a uma certa distância. De repente, eis que o nosso amigo alentejano (que Sérgio nunca soube o nome) quebrou o silêncio. “Boa tarde!!”. Sérgio parou a medição que estava fazendo com seu taqueômetro - instrumento colocado em um tripé e utilizado para a medição de ângulos verticais, horizontais e distâncias lineares no canteiro de obras -, puxou o capacete branco para trás da nuca, limpou o suor com as costas da mão, e respondeu alegremente “Boa tarde! Está um calor danado, hein!”. O alentejano, que estava meio sentado na bicicleta, mordendo calmamente um pedaço de uma espiga de trigo no canto da boca, questionou novamente “Ouvi falar que vão construir uma estrada aqui. É vossemecê que vai construir?” “Sim... Mais ou menos isso... Faço parte da equipe”, respondeu Sérgio. Muito calmo, o nosso amigo alentejano voltou a questionar “E você é doutor?”. Sérgio esboçou um sorriso e respondeu que não, que era apenas engenheiro. “Ah, entendi. E o que é isso que está aí perto de vossemecê, com três pernas?” - insistiu o visitante. “É um aparelho para fazer as medições certas para sabermos onde vai passar a estrada”, comentou Sérgio solicito e tentando ajeitar novamente o capacete para voltar ao trabalho. “Coisas modernas, sabe?” acrescentou o meu amigo. “Vocês das grandes cidades só complicam as coisas que são fáceis”, disparou o alentejano, retirando o fio da espiga de trigo da boca e olhando para ele. “Sério?”, questionou Sérgio olhando curiosamente para seu interlocutor. “Aqui, a gente é muito mais prático. Quando queremos construir uma estradinha, soltamos um burro e vamos atrás dele. Por onde ele passar, é o caminho mais fácil para fazer a estrada e aí fazemos as marcas”, retorquiu o indivíduo. “Bem... respeito as tradições e a sabedoria popular, mas deixa eu perguntar para o senhor: e se por acaso não houver burros próximos para fazer esse trabalho, como fazem?”, questionou Sérgio sorrindo divertido com os modos do típico homem alentejano. Montando calmamente em sua bicicleta, e colocando novamente o pedaço de espiga na boca, o homem respondeu: “Bem, se houver essa dificuldade, então a gente contrata um engenheiro. Bom dia e bom trabalho. Cuidado que o sol está quente!” - e lá foi, pedalando vagarosamente.

(*) O autor é Jornalista profissional / Membro da GNS Press Association (Alemanha) / Correspondente internacional freelancer. MTB 66181/SP.

Esta coluna é uma peça de opinião e não necessariamente reflete a opinião do São Carlos Agora sobre o assunto.

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