terça, 07 de maio de 2024
Memória São-carlense

Lãines Paulillo, professora, cronista e agente cultural que fez história

28 Set 2018 - 07h00Por (*) Cirilo Braga
Lãines Paulillo, professora, cronista e agente cultural que fez história - Crédito: Thomaz Ceneviva/Acervo Digital S.Carlos Clube/Bertinho Medeiros Crédito: Thomaz Ceneviva/Acervo Digital S.Carlos Clube/Bertinho Medeiros

Um detalhe não escapa a quem observa o cotidiano da cidade: o reparo de que há personagens que marcam época e quando partem, deixam pairando no ar uma sensação de que a roda do tempo girou. Tudo o que viveram passa a ser como páginas de um livro bom; revisitar essas páginas ou olhar os álbuns de fotografias é tarefa dos que ficam, não por nostalgia, mas para captar ensinamentos.

A professora e cronista são-carlense Lãines Paulillo, falecida há dez anos, foi uma personalidade assim. Marcante na sociedade de São Carlos nos anos 1960 e 1970, ela não se limitou a reportar os fatos ou observá-los à distância. Na comunicação e como agente cultural de presença infalível nos eventos públicos mais importantes no período, ela deu o seu recado. As fotos em jornais e em solenidades oficiais não deixam dúvidas da visão privilegiada que tinha dos acontecimentos de então.

Quando me tornei seu aluno na Faculdade de Direito, já nos anos 1980, tive contato com a pessoa simples e afável, a professora que sempre me pareceu uma mulher à frente de seu tempo. Com o período militar vivendo o ocaso, os ventos já não sopravam como na década anterior e as suas aulas de Sociologia tinham serenidade. Nas provas em folhas de papel almaço eu conseguia despejar caudalosos textos que ela avaliava com atenção, pois não lhe escapavam os erros de concordância.

Diferente dos colegas que vinham de outras cidades ou não acompanhavam o cenário local, para mim o savoir-faire daquela paciente professora tinha algo de legendário, quase mitológico. Ali na sala o virtual se dissipava na humanidade de sua presença.

Poucas vezes a vi nos anos seguintes; o tempo rodou num instante, os holofotes foram iluminar outros rostos e a Lãines cronista foi quem reapareceu em 2005, numa homenagem aos 100 anos do Colégio São Carlos.

Na ocasião, recebi e distribuí aos jornais da cidade um texto produzido por ela, com o título “O rosto de Deus”, que trazia um curioso e interessante relato.

“Vão pensar que estou maluca...só que foi verdade”, ela alertou à Irmã Jeanne D’Arc, então diretora do Colégio. Fazia menção a uma visão que tivera no final da tarde de 1o. de janeiro de 2003. Da varanda dos fundos de sua casa, seu lugar preferido, viu uma formação de nuvens que desenharam uma figura com dois grandes olhos, um escuro, mais severo, e outro claro, suave. “Aos poucos as nuvens foram se movendo delicada e lentamente e o rosto de Deus foi se formando desde os cabelos até o queixo barbado”.

Dizia ela que sentiu uma paz muito grande, até que em dado momento as barbas se foram alargando, avançando para os lados até atingirem a medida dos dois muros laterais da casa, quando captara uma mensagem: “Não temas. Aconteça o que acontecer, eu estou sobre teu lar e não te faltarei”.

“Nunca vivi momento mais tranquilo e seguro em toda a vida. Mas sabia que algo estava por vir. Bom ou mau?... Decidi que seria bom...só podia ser. Algo muito, muito importante”, contou.

Revelou o acontecido a um dos filhos e recordou que o rosto de Deus era aquele visto na História Sagrada em que estudou no Colégio São Carlos e cuja edição de Frei Albino Hauser, de súbito encontrou num cômodo da mansão de seus pais, ao fazer uma faxina.  Estava em meio a cachepôs de metal, fotos antigas, revistas, livros mais ou menos esquecidos e lá na página dez, trazia a imagem de Deus.Exatamente como as freiras haviam lhe mostrado tanto tempo antes e como Lãines havia visto na formação das nuvens.

O livro se tornou então o mais importante de sua casa e menos de 20 dias se passaram quando a mansão histórica de seus pais foi destruída por um incêndio criminoso. Sob as cinzas sobraram intactos, o porta-retratos com a figura de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, as duas pequenas coroas em bronze de José e Maria do presépio onde sua mãe orava todos os dias, e um livro de orações em plástico, absolutamente perfeito dentro de um móvel carbonizado.

No mês de novembro do mesmo ano, grave enfermidade levou Lãines a um ano de reclusão e em maio de 2005 ela dizia, na crônica, que ambos - o incêndio e a enfermidade – foram vencidos com serenidade e fé.

Inusitado o seu relato, mais ainda pelo simbolismo das peças que sobreviveram. Porta-retratos, duas coroas, o livro de orações e a História Sagrada de certo modo contavam e contam a sua história.

Faço o registro da sua crônica para que não se perca a noção de que acima do glamour haveria algo de singular na personalidade da Lãines Paulillo que marcou época e que, ao falecer em 2008, decerto foi ao encontro daquela imagem tão recorrente na sua memória.

Nascida Lãines Aparecida Giongo, a professora casou-se em 1958, com o comerciante Luiz Paulillo Filho, tendo três filhos Aldo Luiz (falecido), Sérgio Luiz e Luiz Fernando. Em 4 de novembro de 1965, lá estava ela compondo a primeira diretoria da União Cívica Feminina, presidida por Jurandyra Fehr. Era a primeira secretária da entidade, ao lado de Esther Pereira Lopes, Iraides de Oliveira Leite, Juracy Valentie de Oliveira e Erna Fehr Spalini.

Intelectual e colunista do jornal “A Folha”, então dirigido por José Inocentini, em sua coluna “Carrossel”, Lãines permitia à sociedade local se ver refletida em seus escritos e espelhada em sua elegância e singularidade. Afinal, a cidade dos centros de ensino, do clima diferenciado e das indústrias não era, definitivamente, um lugar qualquer.

O quadro de colaboradores do jornal na época contava com cronistas como Eduardo Kebbe com sua coluna de crônicas do cotidiano, Anita Censoni, a Tânia, com as sociais e reminiscências lembrando fatos e personagens que fizeram a história são-carlense, Luiz Bianchini responsável pelo esporte, verdadeira enciclopédia esportiva, pessoas apaixonadas pela comunicação.

Autora dos livros “Trem, Trilho, Tralha” e “Mulher na Claridade”, Laines tinha marcante participação nas atividades do São Carlos Clube – lá estava ela entre “As Mais Elegantes” de 1969, como documenta o acervo do clube. E quando presidiu o Conselho Municipal de Cultura entre 1972 e 1976, na gestão do ex-prefeito Mário Maffei, soube criar uma atmosfera de colaboração para que eventos fossem iniciados – como, por exemplo, a “Sessão Maldita” implantada pelo artista plástico José Sidney Leandro que Lãines convidou para presidir a Comissão de Cinema do Conselho.

No governo Maffei, Lãines trouxe a São Carlos espetáculos musicais, como a apresentação da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo e grandes escritores da época faziam lançamentos de livros na cidade, como Paulo Bonfim, atual decano da Academia Paulista de Letras, que aqui lançou seus “Poemas Escolhidos” em 1973. O Teatro Municipal recebia as melhores peças em cartaz e a cidade podia ver em ação grandes atores e atrizes do período, como Francisco Cuoco e Regina Duarte, então a “namoradinha do Brasil”. À variedade de espetáculos culturais se somava a atração de bandas famosas para os desfiles de 4 de Novembro.  Sua religiosidade levou-a a expandir sua atuação ao conseguir a pavimentação da estrada da Aparecidinha da Babilônia.

A aprovação de seu trabalho a levou a continuar no cargo – que tinha status de secretaria – no governo seguinte, do prefeito Antonio Massei. E a receber o título de Cidadã Benemérita de São Carlos, proposto pelo vereador Romualdo Pozzi, oficializado pelo Decreto Legislativo No. 089, de 1975 e entregue em sessão solene no dia 15 de dezembro de 1978.

A roda do tempo girou; quarenta anos se passaram, mas a memória que se guarda nos arquivos e na lembrança de muitos não permite que se perca na poeira do tempo o registro daquele idealismo de antigamente, a prova de que aqueles que amam de fato a sua terra deixam saudade.

(*) O autor é cronista e assessor de comunicação em São Carlos  (MTb 32605) com atuação na Imprensa da cidade desde 1980. É autor do livro “Coluna do Adu – Sabe lá o que é isso?” (2016).

Esta coluna é uma peça de opinião e não necessariamente reflete a opinião do São Carlos Agora sobre o assunto.

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