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MEMÓRIA SÃO-CARLENSE: Nos tempos do Baile do Jeans

05 Out 2017 - 15h38Por (*) Cirilo Braga
Foto: Arquivo Pessoal - Foto: Arquivo Pessoal -

"Saudade é quando o momento tenta fugir da lembrança para acontecer de novo e não consegue". A frase do escritor Mario Prata vale para um evento épico de São Carlos, guardado para sempre na memória afetiva de gerações de são-carlenses: o Baile do Jeans da Abasc (Associação Beneficente dos Alfaiates de São Carlos).

Entre 1978 e 2002 o clube da rua Jesuíno de Arruda funcionou como um ímã, atraindo jovens de todas as camadas sociais em bailes realizados duas vezes ao ano - em maio e novembro - com duração de oito horas (das 22h às 6h) e animado por duas bandas que se revezavam para não deixar a música parar.

Como resistir a uma balada-show onde tudo acontecia ao mesmo tempo? Paqueras, encontros, desencontros, esbarrões ao acaso que terminaram em casamento e aquela sensação de que a cada novo baile tudo recomeçava e ao mesmo tempo era diferente. Ninguém adivinhava o roteiro, mas a trilha sonora era certeira. "Todos os dias quando acordo não tenho mais o tempo que passou, mas tenho muito tempo", dizia a canção de Renato Russo. Era isso.

INDIGO BLUES

Tudo começou quando Alberto Ivo de Medeiros, o Bertinho, diretor da ABASC durante mais de 40 anos, entrou em entendimentos com a São Paulo Alpargatas na segunda metade dos anos 1970, quando a marca de jeans USTop, fabricada desde o começo da década, substituía definitivamente a calça de brim ou calça rancheira de antes. A USTop ficou marcada por gingles de Renato Teixeira que diziam: "Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada/que você pode usar do jeito que quiser (não usa quem não quer), USTop" e "desbote perca o vinco US Top/Delírio Indigo Blues US Top/seu jeito de viver".

Foi nesse ambiente que Bertinho conversou com a direção da empresa que mantinha em São Paulo a discoteca Moby Dick, trazendo para o interior a "Festa do Jeans" para difundir a marca. O primeiro baile organizado pela Alpargatas em São Carlos com impressionante aparelhagem de som para a época, foi um sucesso. Carlos Ortigoso, o diretor da empresa, ficou empolgado e aceitou a sugestão de Bertinho para que nos anos seguintes os bailes tivessem música ao vivo, com apresentação de bandas como o conjunto "Placa Luminosa", o primeiro a "abrilhantar'" o "Baile do Jeans USTop".

"SINÔNIMO DE PROMOÇÃO"

A edição de 1980 incorporou outra sugestão do diretor: o sorteio de brindes aos presentes, alcançando recorde de público na "Associação": mais de 3 500 pessoas, conforme registrou o colunista Aduar Dibo no jornal "O Diário". Na ocasião a SP Alpargatas distribuiu 100 sapatos, 150 calças, 50 camisas, 500 camisetas, além de centenas de bolsas e chaveiros.

As rádios da cidade abraçaram a promoção e durante a semana que precedia o evento recebiam milhares de cartas para o sorteio de ingressos.  O radialista Geraldo Eugênio foi quem bolou o slogan do departamento social da ABASC: "Sinônimo de promoção". Faixas penduradas em ruas e praças divulgavam o baile pela cidade e região e de repente todos estavam ali no mesmo bat local.

Sob as luzes e o som da Banda Doce Veneno, a mais frequente, Jair Supercap Show, Grupo Nós, Quinta Avenida e - claro - Edinho Show Santa Cruz também batia ponto vez por outra, além de Mac Rybell com acordes de música country quando o sertanejo ainda não era trilha de balada. Não raro figuras como Gretchen no auge da carreira e Luiz Ayrão aterrissavam na ABASC. Nos sorteios de brindes, quem usasse USTop ganhava o prêmio em dobro.

PRODUTO SÃO-CARLENSE

As vendas dos produtos da São Paulo Alpargatas explodiam e a direção da empresa não ficou indiferente: pediu ajuda a Bertinho para levar o baile temático para outras praças como Araraquara, Rio Claro e Piracicaba, mas nessas cidades a promoção não emplacou como em São Carlos. O Baile do Jeans, quem diria, era um produto nosso. Um acontecimento onde quem aguentasse a maratona até as seis da matina tomava café da manhã na edição de maio e saboreava um sorvete na de novembro.

Quem pensa que a relação da fabricante das calças USTop com os são-carlenses ficou só no entretenimento precisa saber que, reconhecendo a fidelidade do público local à marca, a empresa instalou uma fábrica em São Carlos nas dependências da antiga malharia Azouri, gerando pelo menos 200 empregos imediatos nos anos 1980.

Os anos seguintes só fizeram consagrar o "Baile do Jeans", anunciado na rua Jesuíno de Arruda pela instalação de uma enorme calça jeans inflável na porta do clube. Havia outros detalhes que chamavam a atenção, como o luminoso da marca percorrendo as laterais do salão superlotado ainda no clima da era disco e o kit: luz negra/globo espelhado/fumaça de gelo seco.

Dali por diante, as novidades vinham em ondas como o balão inflável promocional que saiu da Praça Coronel Salles e percorreu a cidade. O canhão de raio laser que projetou chamadas do evento a partir da sacada da Abasc e do alto do Hotel Vila Rica (atual paço municipal).

ROCK NA FAIXA

Com a Alpargatas instalada na cidade a empresa fez outro reconhecimento ao sucesso do Baile do Jeans, ao promover em 1987 um show de rock com entrada gratuita reunindo bandas famosas na Avenida Getulio Vargas. Mais de dez bandas incluindo os Titãs marcaram presença, como recorda o diretor Bertinho.

Em 1992 o número de participantes dos bailes chegava a sete mil pessoas.  Só mesmo os bailes de carnaval, eventos mais tradicionais da Associação (com 27 blocos em média), levavam tanta gente ao clube que foi inaugurado em 1940 só para alfaiates e em 1959 abriu seu quadro social depois de instalar o salão na rua Jesuíno. O mais importante ponto de encontro da juventude da cidade tornou-se, de fato, um sinônimo de promoção. Diga-se: muitodevido ao empenho do "Bertinho da Associação", ex-vereador, ex-diretor de Turismo da Prefeitura, mesário da Santa Casa e figura estimadíssima pelos jovens.

CUPIDO

Bertinho conta que anos depois do último Baile do Jeans, realizado em 2002, foi abordado por um rapaz num supermercado que o identificou como o antigo diretor social da ABASC e apresentou-o à família para que testemunhasse uma história curiosa. Dizia que anos atrás quando morava em São Paulo visitou em Ribeirão Bonito um amigo que o convidou para ir ao Baile do Jeans, ao qual chegou atrasado. As portas fechadas do clube, apinhado de gente, só foram abertas porque Bertinho conhecia seu amigo ribeirão-bonitense e assim o moço conseguiu ingressar pela porta da secretaria. Aconteceu que ao subir a escadaria o rapaz esbarrou numa moça que estava de salto e ela caiu, sendo socorrida prontamente por ele, com quem ficou (o termo ainda não era bem esse) durante todo o baile. No supermercado, anos depois, ele apresentou ao "cupido" Bertinho a tal moça, que se tornou sua esposa, e os dois filhos do casal a quem sempre repetia a história. Algo não tão incomum como sabem aqueles que se divertiram anos a fio no "Baile do Jeans" e conheciam a magia de um "acontecimento" tão esperado.

Tínhamos nosso próprio tempo, podem todos dizer (e era fácil saber quem era quem num clima em geral de alegria na pacata São Carlos de algumas décadas atrás).

Se hoje o momento tenta fugir da lembrança e não consegue, é porque foi bom e muito bem vivido. Comprova o dizer de um verso da poetisa Renata Pallottini: o de que se tem saudade é - não daquele lugar - daquela felicidade.

Veja abaixo, imagens de alguns momentos do Baile do Jeans, do acervo fotográfico de Bertinho Medeiros.

Esta seção tem enfoque na memória coletiva de São Carlos e disponibiliza espaço para relatos e fotos de fatos e locais da cidade em outros tempos. O material pode ser enviado para: memoriasaocarlense@gmail.com.

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