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“Para que os vivos e os mortos descansem em paz”

21 MAI 2017 • POR (*) Isaac Soares de Souza • 06h28
Foto: Divulgação

Hoje pela manhã, quando o sol bateu na janela do meu quarto, cujos raios adentraram pelas frestas e iluminaram meus olhos sonolentos, despertando-me para mais um dia, em loas de agradecimento à vida, despertei meio a contragosto, pois sou um contumaz adepto do sono e se pudesse dormiria dia e noite, hibernaria como o fazem os ursos para não ter a posse da tristeza e da revolta me dominando ao presenciar a insensatez da vida e dos seres, que me enojam com seus vômitos podres de insana ignorância e desigualdade, ainda assim, meio desconsolado por ter sido desperto de um ótimo sono, me ajoelhei e de mãos postas, agradeci por estar vivo e ativo, pois a cada noite de sono imagino nunca mais despertar para este imenso persigal que é a vida. Ao agradecer sei lá a quem por mais um dia, liguei o som, tenho a mania de despertar e após os agradecimentos a não sei que força extrema e espiritual, que sinto presente em mim, a qual não tenho denominação e nem sei ao certo se creio mesmo existir, ligar meu parco aparelho de som e aleatoriamente escolho em minha imensa discoteca um disco qualquer e o coloco pra rodar. Hoje sem querer botei pra tocar um disco com várias músicas selecionadas e de imediato canta a voz primorosa de Ednardo, o moço que encheu a cara de CAUIM e que pirou devido à forte dose da bebida indígena e virou Pavão Mysteriozo (isso mesmo, com "Y" e com "Z") e desandou a falar da Guerrilha do Araguaia. Naquelas terras ermas e selvagens, cercada de mata fechada, nos anos 70, época de ditadura tenebrosa, quase uma centena de guerrilheiros foram torturados, assassinados e permanecem desaparecidos, seus corpos foram abandonados em meio à floresta, devorado por animais, dezenas deles foram empilhados e queimados a mando do Exército e ainda hoje mancham as águas do Araguaia. Terminada a canção de triste sina do Ednardo, invade o aparelho ribombando nas caixas acústicas e em meus tímpanos, o cearense Belchior com sua tocante, ímpar e rascante Voz da América, El Condor passa sobre os Andes... Repentinamente, meu espírito desperta acabrunhado e só, perdido e sem lugar, feito um galho seco arrastado pelo temporal, como dizia Zé Geraldo e me recordo de um livro recentemente publicado, intitulado PARA QUE OS VIVOS E OS MORTOS DESCANSEM EM PAZ, magistralmente escrito por Danilo Otoch e publicado pela Cultura em Letras Edições e cujo livro terminei de ler há pouco e em cujas páginas (250) o passado negro é desenterrado e consequentemente impõe ao ar rarefeito um fedor acre de corpos podres ainda na memória. As sequelas deixadas pela ditadura militar brasileira, que se comparada a tantas outras, permanece a mais fraca e menor, mas nem por isto menos violenta e cruel e que mudou as veredas da história do Brasil. O Brasil atravessou anos de chumbo, há mais de 30 anos, governado por um rígido, criminoso sistema militar que torturou, perseguiu, vilipendiou, assassinou, destruiu e emudeceu a voz de centenas de brasileiros ávidos e esperançosos por democracia e respeito e que a partir dos anos de 1980 renasceu com novas metas, com o término do regime militar. Em minha modesta e nada eloquente opinião, a ditadura militar sofreu um grande recesso, praticamente finalizada, mais ainda presente de forma mascarada nos dias atuais, menos rígida, menos assassina, mais ainda presente no dia-a-dia brasileiro, basta que olhemos diretamente nos olhos da polícia brasileira, mancomunada com o crime organizado, violenta, torturadora e assassina, desprovida de respeito pelo povo que paga seu soldo, para se constatar que pelo menos resquício da ditadura militar permanecem enraizados. Nos anos de chumbo havia luta armada e muita revolta, movimentos reivindicatórios e subversivos em todos os países do cone sul. Estes países abalados pelos movimentos subversivos decidiram se dar as mãos e unirem forças para operarem em conjunto contra os estudantes e adeptos das guerrilhas. Um intercambio gigantesco e segredado entre os governos do cone sul e as organizações armadas de todos esses países agiam mancomunados, uns nos territórios dos outros, torturando, assassinando e trocando presos políticos. A esta organização que englobava as ditaduras dos países do cone sul nomearam de OPERAÇÃO CONDOR... "El Condor passa sobre os Andes e abre as as asas sobre nós...? A sagacidade de Belchior nesta canção, é deveras impressionante, a censura e a ditadura brasileira não perceberam o toque que o cearense passava nestes versos sombrios e metafóricos.

O livro PARA QUE OS VIVOS E OS MORTOS DESCANSEM EM PAZ desenterra velhas e eternas lembranças de um passado que não pode jamais ser esquecido, mostra esse passado negro sem qualquer cerimônia, com ousadia, verdade e por que não dizer ainda com sede de justiça para que uma época tão nefanda não volte a se repetir, pois muita coisa ainda falta para ser contada, exatamente Para que os Vivos e os Mortos Descansem em Paz...

Araguaia
Ednardo

Quando eu me banho no meu Araguaia
E bebo da sua água sangre fria
Bichos caçados na noite e no dia
Bebem e se banham eles são comigo

Triste guerrilha companheiro morto
Suor e sangue, brilho do corpo
Medo só
Mas se o corpo desse pó é pó
Um círio da luz dessa dor
Violento amor há de voar

Voz da América
Belchior

El condor passa sobre os Andes
e abre as asas sobre nós.
Na fúria das cidades grandes
eu quero abrir a minha voz.
Cantar, como quem usa a mão
para fazer um pão,
colher alguma espiga;
como quem diz no coração:
- Meu bem, não pense em paz,
que deixa a alma antiga.

Tentar o canto exato e novo,
que a vida que nos deram nos ensina,
pra ser cantado pelo povo,
na América Latina.

Eu quero que a minha voz
saia no rádio, e no alto falante;
que Inês possa me ouvir, posta em sossego a sós,
num quarto de pensão, beijando um estudante.
Quem vem de trabalhar bastante
escute e aprenda logo a usar toda essa dor
quem teve que partir para um país distante
não desespere da aurora, recupere o bom humor.
Ai! Solidão que dói dentro do carro...
Gente de bairro afastado,
onde anda meu amor?
Moça, murmure: Estou apaixonada,
e dance de rosto colado, sem nenhum pudor.

E à noite, quando em minha cama
for deitar minha cabeça,
eu quero ter daquela que me ama
um abraço que eu mereça;
um beijo: o bem do corpo em paz,
que faz com que tudo aconteça;
e o amor que traz a luz do dia
e deixa que o sol apareça
sobre a América,
sobre a América, sobre a América do Sul.

LANÇAMENTO/LIVRO: "PARA QUE OS VIVOS E OS MORTOS DESCANSEM EM PAZ", de Danilo Otoch
250 páginas
Cultura em Letras Edições/Oliver 4
Rio de Janeiro
www.culturaemletras.com.br

(*) O autor nasceu em Pompéia/SP. Atualmente reside em São Carlos e trabalhou nos principais jornais diários da cidade, nos quais escreveu por anos a fio, colunas dedicadas à Literatura e MPB. É fã do saudoso Raul Seixas.

Contato do autor: dylanseixas@rocketmail.com 

Fones: (16) 3413-3085 e 99141-2852