Saúde

Queima de fogos na virada do ano causa sofrimento a autistas, idosos e bebês, alertam especialistas

Ruídos intensos podem provocar crises sensoriais, ansiedade, distúrbios do sono e até surtos; alternativas sem estampido ganham força como opção mais inclusiva

31 DEZ 2025 • POR Da redação • 08h55
Fogos - Divulgação

Tradição em celebrações de Ano-Novo, a queima de fogos de artifício tem sido cada vez mais questionada por especialistas da saúde devido aos impactos negativos causados pelo barulho intenso, principalmente em pessoas mais sensíveis aos ruídos, como indivíduos com Transtorno do Espectro Autista (TEA), idosos e bebês.

O neuropediatra e professor da Escola de Medicina e Ciências da Vida da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Anderson Nitsche, explica que, no caso das pessoas autistas, os efeitos podem ir além do momento da virada. “As crianças e pessoas autistas têm uma sensibilidade maior ao som e isso causa uma perturbação momentânea, mas que pode até durar por mais tempo, gerando sofrimento e insônia durante alguns dias”, afirma.

Segundo os especialistas, o barulho dos fogos pode desencadear crises sensoriais em pessoas com TEA. Essas crises se manifestam por alterações de comportamento, que vão desde ansiedade intensa e vontade de fugir do ambiente até episódios de agressividade contra si ou contra outras pessoas.

A neurologista e diretora clínica do Hospital INC (Instituto de Neurologia de Curitiba), Vanessa Rizelio, destaca que o cérebro da pessoa com autismo não consegue interpretar o ruído como algo festivo. “O cérebro deles entende como uma coisa negativa, algo que está gerando um desconforto, e a reação vai ser sair daquela situação. Muitas vezes, isso se manifesta como ansiedade, irritabilidade e prejuízo no sono, que pode impactar até o dia seguinte”, explica.

A neuropediatra Solange Vianna Dultra, fundadora da Associação de Neurologia do Estado do Rio de Janeiro (ANERJ), acrescenta que os efeitos também são físicos. “O coração dá uma descarga de adrenalina, acelera, a pressão sobe. Eles não conseguem entender que é uma festa. É como se estivessem no meio de um tiroteio”, compara. Segundo ela, algumas pessoas chegam a se desregular apenas com o barulho do recreio escolar, o que demonstra o impacto dos estímulos sonoros.

Alternativas mais inclusivas

Diante desse cenário, algumas cidades brasileiras passaram a rever a prática da queima de fogos ruidosos em celebrações públicas, adotando legislações que proíbem artefatos com estampido. Fogos silenciosos, espetáculos de luzes e apresentações com drones surgem como alternativas que preservam o simbolismo da festa sem causar sofrimento a parte da população.

A psicóloga Ana Maria Nascimento, especializada em neuropsicologia e saúde mental, avalia que essas alternativas ampliam o direito à participação coletiva. Para ela, insistir nos fogos barulhentos, apesar das opções disponíveis, “parece um gesto de indiferença”. “Celebrar pressupõe convivência. Quando a alegria de uns depende do sofrimento de outros, é legítimo questionar se essa tradição ainda faz sentido”, afirma.

Solange Vianna ressalta ainda que o impacto do barulho não atinge apenas a criança autista, mas toda a família, que precisa lidar com as crises e suas consequências. Ela observa que, no caso dos fogos silenciosos, a luminosidade não costuma ser um problema e pode ser facilmente controlada mantendo a criança longe de janelas.

Empatia e inclusão

Para Anderson Nitsche, a discussão passa pela empatia e pela inclusão. Ele lembra que a prevalência mundial do autismo gira em torno de 3% da população e que, embora nem todas as pessoas no espectro apresentem alterações sensoriais auditivas, muitas sofrem com estímulos intensos. “O processo de inclusão passa pela ideia de entender que há pessoas diferentes da gente e que, muitas vezes, a minha liberdade fere a liberdade do outro e gera um sofrimento desnecessário”, destaca.

Impacto em idosos e bebês

Os idosos também estão entre os mais afetados, especialmente aqueles com demência. De acordo com Vanessa Rizelio, o ruído intenso pode desencadear surtos de delírios e alucinações, além de prejudicar o sono, a memória e o raciocínio no dia seguinte.

Os bebês, que necessitam de longos períodos de sono, também sofrem com a queima de fogos, que costuma começar horas antes da meia-noite. “Se o bebê passa a ser despertado por esse ruído ou não consegue adormecer, isso traz prejuízos, porque o barulho vai aumentando gradativamente até chegar ao ápice”, explica a neurologista.

Como forma de minimizar os impactos, especialistas sugerem o uso de sons ambientes, como ruído branco, ou abafadores de ouvido para crianças maiores. Ainda assim, Vanessa critica a falta de fiscalização em cidades onde a venda de fogos ruidosos já é proibida. “Em Curitiba, por exemplo, essa lei está em vigor há mais de cinco anos e continuamos ouvindo muitos fogos barulhentos no Ano-Novo”, afirma.

Para a especialista, é necessário mais rigor para “minimizar o impacto de um comportamento humano que já deveria ter sido mudado há muito tempo”.