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Devedor pode ficar sem CNH, passaporte e cartão?? STJ fixa regras e muda o jogo na cobrança de dívidas

5 DEZ 2025 • POR Alex Padua • 13h40
AlexPadua

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu um passo importante para dar mais efetividade à cobrança de dívidas na Justiça, mas ao mesmo tempo colocou freios e critérios claros para evitar abusos. Em julgamento do Tema 1.137, a 2ª Seção confirmou que juízes podem determinar medidas “fora do comum” – como suspender passaporte, bloquear cartões de crédito e suspender a CNH do devedor – desde que esses mecanismos respeitem limites bem definidos.

A decisão interessa diretamente a quem cobra e a quem é cobrado em ações de execução. Ela mostra que o Judiciário está disposto a enfrentar o devedor que se esconde, mas sem transformar a execução em punição desmedida.

 

1. O que são “medidas atípicas” de execução?

O Código de Processo Civil não faz uma lista fechada de todas as formas de pressionar o devedor a cumprir decisões judiciais. Em vez disso, o artigo 139, inciso IV, autoriza o juiz a usar “todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias” para garantir o cumprimento da ordem judicial.

Com base nisso, a prática forense consolidou o uso das chamadas medidas executivas atípicas, que são instrumentos de coerção:

voltados a compelir o devedor a pagar o que deve ou cumprir a obrigação.

Exemplos que já se tornaram conhecidos:

Essas medidas ganharam força a partir de 2015, quando o novo CPC ampliou o leque de meios de apoio à execução, inclusive em obrigações de pagar quantia.

 

2. O que o STJ decidiu no Tema 1.137

A 2ª Seção do STJ, ao julgar o Tema 1.137 dos recursos repetitivos, consolidou o entendimento de que é cabível o uso de meios executivos atípicos nas execuções cíveis regidas pelo CPC, mas não de forma automática nem ilimitada.

A tese fixada estabelece que essas medidas:

  1. Devem observar, ao mesmo tempo, dois princípios:
    • a efetividade da execução (fazer a decisão funcionar na prática); e
    • a menor onerosidade ao devedor (não causar sacrifício maior do que o necessário).
       
  2. Devem ser usadas de forma subsidiária, isto é, só depois de demonstrado que os meios típicos (penhora de bens, bloqueio de contas, etc.) se mostraram insuficientes ou ineficazes no caso concreto.
     
  3. Precisam de decisão judicial bem fundamentada, com base nas particularidades do processo, explicando por que a medida é necessária naquele caso e qual o objetivo que se busca alcançar.
     
  4. Devem respeitar o contraditório, a proporcionalidade e a razoabilidade, inclusive quanto ao tempo de duração da medida (não pode ser uma restrição eterna ou descontrolada).

Em síntese, o STJ reforça que não existe “carta branca” para suspender documentos do devedor: cada caso exige análise cuidadosa, com base em critérios objetivos e decisão bem justificada.

 

3. Quem é o alvo dessas medidas? O “devedor contumaz”

O STJ deixou claro que o foco das medidas atípicas não é o devedor comum, que enfrenta dificuldades reais e tenta negociar, mas sim o devedor contumaz – aquele que se esquiva deliberadamente, resiste de forma injustificada e se vale de manobras protelatórias para impedir o cumprimento da decisão.

Em termos práticos, os julgados destacam situações como:

Nesses cenários, medidas como suspensão de passaporte ou CNH são vistas como um “incômodo processual” legítimo, destinado a dobrar a resistência injustificada do devedor.

 

4. Por quanto tempo o passaporte ou a CNH podem ficar suspensos?

Um ponto sensível é o prazo dessas medidas. O STJ já vinha decidindo que elas devem durar apenas o tempo necessário para vencer a renitência do devedor.

Em precedente recente, analisando a retenção de passaporte por longo período em execução de honorários sucumbenciais que se arrastava há mais de 17 anos, o Tribunal destacou que:

Nesse contexto, a Corte concluiu que não há fórmula fixa de tempo. A medida deve durar enquanto for necessária para produzir o efeito coercitivo – ou seja, até convencer o devedor de que é mais vantajoso cumprir a obrigação do que permanecer sob a restrição (por exemplo, sem poder viajar ao exterior).

Ao mesmo tempo, o próprio STJ alerta que não se pode transformar a medida em sanção perpétua: é preciso reavaliar sua utilidade e proporcionalidade ao longo do processo.

 

5. Precisa provar que o devedor tem bens?

No debate do Tema 1.137, o relator, ministro Marco Buzzi, chegou a propor que as medidas atípicas só fossem usadas quando houvesse indícios de patrimônio penhorável em nome do devedor.

Essa exigência, porém, não entrou na tese final. A ministra Nancy Andrighi ponderou que, se o credor soubesse exatamente onde estão os bens do devedor, provavelmente já os teria indicado à penhora, tornando desnecessária a medida atípica. Apenas a ministra Isabel Gallotti ficou vencida nesse ponto.

Resultado: não é requisito da tese a prova prévia de patrimônio do devedor. Continua sendo essencial, porém, demonstrar:

 

6. STF também validou os meios atípicos

A discussão sobre constitucionalidade dessas medidas – especialmente frente a direitos como liberdade de locomoção e exercício de profissão – chegou ao Supremo Tribunal Federal.

Em julgamento de 2023, o STF reconheceu a validade dos meios atípicos de execução, ressaltando que eles:

Assim, a posição que se consolida é de legitimidade condicionada: pode usar, mas com critério.

 

7. Balizas doutrinárias e jurisprudenciais

A doutrina processual também já vinha discutindo o tema, com destaque para o Enunciado 12 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), que orienta:

 

No mesmo sentido, precedentes de Turmas do STJ reforçam que:

 

8. O que muda na prática para credores e devedores?

A decisão do STJ não cria um “direito automático” de suspender passaporte, CNH ou cartões de crédito em qualquer inadimplência. O recado é mais sofisticado.

 

Para quem cobra (credores)

Em termos estratégicos, o julgamento do Tema 1.137 fortalece a posição do credor diligente, que atua com técnica e consegue demonstrar resistência injustificada do devedor.

 

Para quem é cobrado (devedores)

 

Em todos os casos, a orientação especializada é fundamental para:

É importante ainda esclarecer que todas essas balizas foram fixadas pelo STJ tendo em vista, sobretudo, as execuções cíveis regidas pelo Código de Processo Civil. Já nas execuções fiscais, disciplinadas pela Lei nº 6.830/80, a Corte Superior tem adotado postura significativamente mais restritiva quanto ao uso de medidas atípicas como a suspensão de passaporte e de CNH, em regra afastando a aplicação desses mecanismos no âmbito fiscal.

Por fim, o julgamento do Tema 1.137 pela 2ª Seção do STJ consolida um novo patamar de efetividade das execuções civis, ao reconhecer que a suspensão de passaporte, CNH e cartões de crédito pode ser um instrumento legítimo de pressão sobre o devedor que se recusa, injustificadamente, a cumprir decisões judiciais.

Ao mesmo tempo, a Corte traça balizas firmes:

A mensagem é direta: o Judiciário está mais rigoroso com o devedor contumaz, mas sem romper com as garantias fundamentais. Por isso, credores e devedores devem agir com transparência, boa-fé e apoio jurídico qualificado, sob pena de a execução sair do campo patrimonial e afetar diretamente a vida diária, como o direito de dirigir ou viajar ao exterior.

 

Dr. Alex Padua

OAB/SP 177.155 - Advogado