Escravos afrodescendentes construíram Ciclo do Café
A saga e o sofrimento da raça negra que construiu a riqueza do interior paulista e a mancha racista na história do município
3 NOV 2025 • POR Marco Rogério Duarte • 10h00Em 1884, mesmo ano em que a ferrovia chegou a São Carlos, o número de escravos atingiu seu ápice. O município, nesse ano, contava com 3.774 escravos. Segundo o professor Álvaro Rizzoli, Caetité, no Estado da Bahia, foi o grande centro exportador de escravos para São Carlos do Pinhal, então importante polo importador de mão de obra cativa.
O negócio era tão lucrativo que os maiores comerciantes de escravos do interior baiano acabaram se mudando para São Carlos, inclusive como fazendeiros, o que facilitava a transferência de cativos — já que, de uma propriedade para outra pertencente ao mesmo senhor, o deslocamento de escravos era permitido. Entre 1874 e 1882, as transações cresceram 121%.
Apesar de São Carlos ter sido fundada em um período de decadência do tráfico negreiro, a dura verdade é que os cafeicultores da cidade exploraram a escravidão ainda por trinta anos. Segundo o Censo Paroquial de 1874, a população negra do município — somando escravos, pardos livres e pretos livres — correspondia a 39,3% do total de habitantes. A população era de 7.897 pessoas, sendo 1.568 escravos, dos quais 926 homens e 642 mulheres.
A data de fundação de São Carlos do Pinhal, em 1857, coincide com o declínio do regime escravista no Brasil. A Lei da Extinção do Tráfico Negreiro, de 1850, já indicava que esse tipo de mão de obra servil se tornaria escasso nos anos seguintes. A partir de então, o valor dos escravos aumentou em até 100% na região.
Além da dificuldade para adquirir escravos — em razão da inflação de seus preços —, ocorreu a explosão da produção cafeeira, o que fez crescer a demanda por trabalhadores em grande quantidade. O café tornava-se uma alternativa real de investimento e enriquecimento. O avanço da produção dessa cultura fez com que escravos fossem trazidos do Nordeste, comprados a peso de ouro. Entre 1884 e 1887, São Carlos chegou a ter o dobro do número de escravos de Araraquara, embora sempre em menor quantidade que Rio Claro.
Os escravos eram tratados como verdadeiras máquinas de trabalho. Labutavam de sol a sol e só descansavam aos domingos. A jornada podia chegar a 16 horas diárias. Tinham pouco ou nenhum tempo para a lavoura de subsistência. Aos domingos, costumavam pescar para complementar a alimentação, pois, durante a semana, as refeições consistiam em uma mistura rala de milho e feijão servida em cuias. Ao acordar, recebiam café adoçado com açúcar mascavo e, no inverno, eram obrigados a tomar aguardente. Com exceção do toucinho, a carne era artigo raro.
Moravam em senzalas sem janelas, ficando expostos a diversas doenças. Muitos não passavam dos 30 anos de idade. As causas mais comuns de morte eram traumatismos, doenças cardiovasculares e inanição.
Os escravos levavam apenas o nome de batismo e eram registrados somente com o nome da mãe. Havia muitos nomes repetidos e, em alguns casos, o filho era batizado com o nome do senhor ou de um santo.
Esses seres humanos não eram considerados cidadãos e não possuíam qualquer direito. O Código Comercial da época incluía os escravos entre os bens móveis, e, embora isso não os tornasse objetos passíveis de comércio formalmente, eles eram transacionados — e o Estado cobrava impostos sobre essas negociações.
Em 1871, foi promulgada a Lei do Ventre Livre, e, em 1885, a Lei dos Sexagenários. Finalmente, em 1888, a princesa Isabel sancionou a Lei Áurea, abolindo a escravidão no Brasil.
Após a alforria, muitos ex-escravos permaneceram nas fazendas, recebendo salários muito menores do que os pagos aos imigrantes. A maioria dos libertos da Fazenda Pinhal formou a Vila Izabel, no final do século XIX, depois de deixar a propriedade rural rumo à cidade de São Carlos. Sofriam toda sorte de discriminação, mas, mesmo assim, conseguiram preservar e afirmar seus costumes.
Na região onde hoje existe a Vila Pureza, também foram erguidos vários casebres que abrigavam ex-escravos. O local era preconceituosamente chamado de “Cinzeiro”.
Ao anoitecer, centenas de negros se reuniam ali. Antes da sessão — uma mistura de ritual religioso e dança — havia um grande silêncio. Essa tranquilidade era quebrada apenas pela voz do chefe do terreiro, que dirigia palavras aos presentes em uma melodia semelhante a uma oração.
Batuques, danças e umbigadas seguiam-se com grande entusiasmo de todos os participantes. A dança frenética avançava até o êxtase, para então cessar e recomeçar. A coreografia era tão intensa que muitos brancos, ao tentarem imitar os passos, terminavam caindo ao chão.
As danças do “Cinzeiro” tornaram-se uma atração para toda São Carlos. Eram manifestações culturais que precederam a Umbanda, o Candomblé, as escolas de samba e as academias de capoeira, revelando a riqueza cultural dos afrodescendentes na cidade.