Nhô Mércio, poeta e incentivador da cultura popular
27 ABR 2018 • POR (*) Cirilo Braga • 03h56Em agosto de 2013, quando comemorou os 10 anos do Cantinho da Viola, o Sesc São Carlos escolheu para ser o apresentador de uma série de shows o poeta, declamador e radialista Mércio Finhana, conhecido como "Nhô Mércio", anunciado como “uma relíquia da cultura popular são-carlense”, que na ocasião interpretou clássicos poemas caipiras ao som do ponteado da viola.
O termo “relíquia”, usado para se referir a objetos preservados pela fé, diga-se, não chegava a ser exagerado ou sacrílego naquela referência.
Para além da apresentação dos músicos que ali estiveram – entre os quais a lendária dupla Pedro Bento & Zé da Estrada – quem acompanhou durante anos a fio a trajetória da música sertaneja de raiz na cidade e região, sabia que o tributo a ser prestado era mesmo para Nhô Mércio, um homem simples e profundamente representativo do mundo da viola e dos violeiros.
Ao longo da vida, Nhô Mércio cultuou e apoio legiões de violeiros, indo ao encontro do povo para realizar seu desígnio de poeta que era e uma fenomenal capacidade de emocionar as pessoas declamando poemas e letras de músicas como “Cabocla Teresa”. Quando o conheci era um velho amigo de meu sogro Miguel Vaccare e estava ao microfone nas manhãs da Intersom FM em sua saudação peculiar: “Ôôôôôô”, tal como um boiadeiro para emendar o aviso: “Vamos se alevantando, seis em ponto!”
Mércio foi uma das raras pessoas que na vida, com naturalidade descobrem o que amam fazer e colocam sua alma no que fazem. Tanto que, quando no rádio começaram a bagunçar com o chamado “sertanejo de raiz”, com um certo desalento ele resolveu tirar o time de campo, partindo para a apresentação em shows e eventos. A invasão eletrônica em certo período lhe parecera um insulto pessoal, porque não era um acaso aquele “Nhô” junto a seu nome: era porque respirava a cultura autêntica da gente do interior. Esgrimia na defesa do sertanejo das antigas.Da autêntica música caipira, de Tonico e Tinoco, Tião Carrero e Pardinho, Léo Canhoto e Zé da Estrada, Teodoro e Sampaio, Zé Fortuna, Mato Grosso e Matias, Pena Branca e Xavantinho e tantos outros.
Nhô Mércio chegou a São Carlos aos dez anos, vindo de Dourado onde nasceu em 15 de junho de 1936. Casado com Benedita Tereza, teve dois filhos, Mércio Roberto e Meire Renata, e aqui aprendeu marcenaria – era marceneiro dos bons – na Escola Industrial e trabalhou nas indústrias Pereira Lopes e Johann Faber, entre outras.
Na década de 1960 no aniversário de São Carlos, organizava um carro alegórico com os violeiros locais, apresentando-se na avenida São Carlos em cima de um caminhão. Era aplaudido entusiasticamente pelas pessoas que ficavam até surpresas com a autenticidade do espetáculo. Ficariam surpresos também quando Nhô Mércio – ele mesmo! - deu um show de resistência física ao participar de uma prova no mercado municipal que consistia em ficar o maior tempo possível pedalando uma bicicleta ergométrica. Mércio conseguiu a marca de 31 horas.
Devoto de Nossa Senhora Aparecida, durante 60 anos fez a caminhada a pé até o Santuário da Babilônia e dedicou à santa um de seus poemas, feitos a partir da inspiração que ganhou desde criança quando gostava de ouvir no rádio as modas de Tonico e Tinoco e Zé Fortuna e Pirangueira.
Os nomes pungentes de seus poemas, reunidos num dos CDs que lançou, já indicam o lirismo de seus versos, como em “Árvore das Lágrimas”, “Raiz da Saudade, “Menino Pobre”, “A volta do filho”, “Natal na Roça”, “Conselho de Caboclo”, entre outros. Nesse trabalho primoroso fez questão de homenagear dois amigos “o Celso da Casa das Bombas e o Dr. Waldemir Dantas”. Mércio tinha uma definição belíssima de quem eram os violeiros: “Caboclos de simplicidade altaneira com a viola no peito, encostada no coração”.
Radialista que comandou programas sertanejos por mais de 40 anos, Mércio participou de festivais, se apresentou em muitas cidades da região e era sempre convidado especial para declamar seus poemas em empresas de São Carlos.
Começou a trabalhar na rádio em 1970, à frente do “Ranchinho do Nhô Mércio” na Rádio São Carlos. Naquele mesmo ano participou em São Paulo com o amigo Zé Boni e a dupla Caxiné e Caxiado do festival Beira da Tuia, da Rádio Bandeirantes. A dupla fez questão de prestar uma grande homenagem ao amigo amigo na parceria de seu maior sucesso, a música “Pagode dos Namorados”. Em 1978 Nho Mercio passou a apresentar o “Rancho dos Violeiros” na Rádio Progresso e quando a Intersom FM entrou no ar, transmitindo dos altos da Vila Nery, lá estava ele, madrugando com seu “Brasileirão”.
Aos domingos sempre que podia participava da roda de viola do Rancho do Abacateiro, contando causos e fazendo suas declamações. Dizia que o mais importante era citar os nomes dos autores dos poemas, “é uma honra e não pode ser esquecido”, frisava.
Relembrar a caminhada dele é redescobrir seu talento e notar que ele merecia ser nome de rua na cidade de São Carlos, para que seus versos ecoassem ao longo da história, nessa longa estrada da vida não de pessoas, mas da própria cidade.
Apesar de vivermos na “Capital da Tecnologia”, apesar da lida na roça ser chamada de “agronegócio”, apesar de tantas coisas desse mundão moderno, a boa moda de viola vem provar que não precisamos ter vergonha de topar com a grande verdade: somos caipiras no melhor sentido.
Nho Mércio faleceu em São Carlos no dia 21 de janeiro de 2015 aos 78 anos. Deixou a lembrança de sua paixão pela cultura popular genuína expressa no solo de viola que quase chora fazendo fundo aos poemas do homem de fala tranquila, mas que, contraditoriamente, andava sempre com aparente pressa. E a todos despertava na alvorada lá dos altos da Vila Nery com seu “Vamos se levantando!” antes das 6 da matina.
(*) O autor é cronista e assessor de comunicação em São Carlos (MTb 32605) com atuação na Imprensa da cidade desde 1980. É autor do livro “Coluna do Adu – Sabe lá o que é isso?” (2016).
Esta coluna é uma peça de opinião e não necessariamente reflete a opinião do São Carlos Agora sobre o assunto.