Memória São-carlense

O Largo Santa Cruz

6 ABR 2018 • POR (*) Cirilo Braga • 04h57

Conhecer a história de algumas praças da cidade ajuda a entender a maneira como a cidade cresceu e se tornou o que é hoje, pois toda praça surge como um ponto de encontro, um centro de convivência dos moradores da cidade, de tal modo que a transformação do seu significado tem algo de revelador sobre o lugar onde se vive.

O concreto dos coretos e dos bancos, as pedras do calçamento, o verde das árvores, gramados e folhagens que a compõem fisicamente, dão forma ao que metaforicamente a praça representa: a humanização do espaço urbano. Será sempre assim, mesmo que ela se torne apenas um trecho de passagem das pessoas que cortam a praça com seu caminhar apressado, sem se dar conta de que muito antes ali pulsava o espírito de uma comunidade.

Assim se passa com a Praça Elias Sales, o "Largo Santa Cruz", um dos expoentes do conjunto histórico de praças no centro comercial da cidade, fincada num ponto em que no final do século 19 se constituiu o que se chamou de “Piccola Calábria”, o local onde famílias italianas recém-chegadas de trem para trabalhar na lavoura de café se aglomeravam para aguardar as carroças que conduziriam às fazendas do município. E onde tempos depois os “oriundi” se estabeleceram dando valiosa contribuição ao desenvolvimento de São Carlos. Nas cercanias também fincaram raízes muitas famílias sírio-libanesas.

Pode se imaginar a ligação afetiva do povo com a praça que nasceu como um largo de uma igreja católica no quadrilátero entre a Avenida São Carlos e as ruas Dona Alexandrina, Bento Carlos e Santa Cruz.

Um corte no tempo, remetendo aquele espaço até o ano de 1877 encontra no centro da praça a Igreja da Santa Cruz, atraindo a população para suas cerimônias e festas. Foi esse o cenário que os imigrantes ali encontraram e que perdurou até 1926, quando devido à falta de condições estruturais, o prédio da igreja foi demolido com a proposta de ser reconstruído em pouco tempo, coisa que nunca aconteceu. Nada do que não era antes quando não somos os mutantes.

Onze anos se passaram até que um crime abalou a cidade:  no dia 20 de outubro de 1937 num duelo com um comerciante, o popular prefeito Elias Sales morreu no confronto em que também seu rival de nome Vicente Celli, perdeu a vida. Cenas de faroeste caboclo no Bar Selecto que funcionava na rua Sete de Setembro.

No ano seguinte após um abaixo-assinado feito pela população, o então Largo Santa Cruz passou a se chamar Praça Elias Sales (oficializada pelo Ato 480/1938) em homenagem ao notório ex-prefeito.

Elias Augusto de Camargo Salles, conhecido como Nhozinho Salles, governou a cidade por três mandatos, 1917/1920; 1922/1923 e 1936/1937. Filho e herdeiro político do Coronel José Augusto de Oliveira Sales, ele era Capitão da Guarda Nacional e chefe do Partido Republicano Paulista. Em seu governo foi efetivada a compra do Palacete da Condessa do Pinhal para abrigar a Câmara Municipal e instituído o brasão do município. Nhozinho não media esforços para ajudar o povo, tanto assim que dirigiu pessoalmente o atendimento às vítimas da epidemia de gripe espanhola que grassou na cidade em 1918. Era encontrado em hospitais ou nas casas dos doentes, auxiliando no que fosse possível. Um líder típico de outra época.

A praça que evocava o velho templo demolido e um evento trágico para a memória local, tornou-se um dos mais belos recantos da cidade durante muitos anos. Por sua proximidade com a estação ferroviária e seu aspecto de jardim com cerca de dez mil metros quadrados, ostentando em seu entorno uma fileira de palmeiras imperiais, a praça frequenta a memória das gerações de pessoas que viveram em suas imediações. E, assim, deram a ela o sentido literal de uma praça: o ponto onde a cidadania se manifesta, onde as pessoas se veem e se comunicam, vivenciam o sentido de coletividade.

Eduardo Kebbe, o maior cronista são-carlense, morador nas cercanias, numa crônica publicada em 1977 homenageou Sylvestre Bacchini, o então jardineiro da praça. “Pode este jardim não ser o mais belo do Brasil, mas é seguramente um belo jardim. Bem cuidado cada vez mais bordado de cores,cada vez mais sonoro; cultivado com talento pelo homem que acredita nas flores, como acredita em Deus”, escreveu ele.

“Calejado com os trampos da vida,o senhor Silvestre fez e faz de seu jardimuma grave missão a cumprir;missão que ele vai cumprindo sem esmorecimento, antes com fé formidável, muito trabalho, muita eficácia e paciência”. Bons tempos aqueles...

As lembranças daquele espaço têm sempre um conteúdo poético e recordações que alcançam até o tempo em que ali existiu um tanque de peixe, antes de muitas remodelações que se sucederam. A praça confirma o dizer do arquiteto francês Jean Novel,que declarou: “A cidade é um museu. Um livro de pedra, que conta sua história por meio da petrificação dos desejos de diferentes gerações”.

Quem viveu a infância nos anos 1950 na região da Praça Santa Cruz, no centro da cidade, recorda-se do antigo Bar do Pedro, na esquina da Avenida São Carlos com a rua Bento Carlos, famoso pelos salgados: pastel, pizza e um delicioso lanche de pernil, num tempo em que as crianças da região brincavam na praça e estudavam no Grupo Escolar Eugênio Franco. Ali bem perto surgiu e desapareceu o Cine Avenida, o outro cinema da região central além do memorável Cine São José. Signos de um período romântico da cidade onde circulavam os bondes vermelhos da CPE e suas praças eram cuidadas com esmero.

A praça, que mantém dois monumentos – o busto do Prefeito Elias Salles e o livro aberto com a inscrição dos 10 Mandamentos, doado pela comunidade Adventista do Sétimo Dia – foi citada pelo colunista Aduar Dibo em sua coluna “Sabe lá o que é isso?” numa declaração de amor a São Carlos feita por meio da crônica intitulada “Minha volta do Rio”, publicada em 1966. O texto de “Adu”, que era dentista e mantinha seu consultório na Avenida São Carlos, perto da praça, narra a emoção de seu retorno à cidade natal, desembarcando exatamente naquele ponto.

“De madrugada cheguei. Saltei na praça. Um gostoso silêncio me envolveu depois que o ônibus se foi. Senti o cheiro da minha terra, o gosto deste ar, o aroma dos saborosos pães (do Caruso) ali pertinho; senti enfim que já estava em São Carlos, próximo de casa, do consultório dos amigos, de tantas coisas boas. O nevoeiro estava baixo e toda a grama da praça brilhava com os diademas do orvalho. Somente quem ama sua cidade se eleva na grandeza de sua fé por ela”, escreveu.

“O verdadeiro amor pela pátria começa aqui onde se nasce, onde se trocam os primeiros passos, onde os pais estão sepultados, onde se tem ilusões. São Paulo é grande, o Brasil muito maior e São Carlos é tão pequena que cabe melhor em nossos corações. A profundidade do amor que se tem pela terra em que se vive dificilmente se compreende e muito menos se descreve. Longe, sente-se bem isto”, completou.

Mesmo sendo hoje um ponto de passagem de pedestres apressados, a praça encanta aqueles que se detém a sentar-se num de seus bancos e contemplar aquele espaço, tão cheio de simbolismo, sobretudo pelos que ali vivenciaram sua infância e juventude. “Eu já matei aula pra ficar naquela praça tocando violão”, me confessa um jovem colega. Não é preciso ir longe – no tempo e na distância – para compreender que os lugares da cidade documentam a vida de seus moradores.

(*) O autor é cronista e assessor de comunicação em São Carlos  (MTb 32605) com atuação na Imprensa da cidade desde 1980. É autor do livro “Coluna do Adu – Sabe lá o que é isso?” (2016).

Esta coluna é uma peça de opinião e não necessariamente reflete a opinião do São Carlos Agora sobre o assunto.