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Memória São-carlense

Conservatório Musical, templo de cultura em São Carlos

16 Ago 2019 - 07h00Por (*) Cirilo Braga
Conservatório Musical, templo de cultura em São Carlos - Crédito: A Folha/Reprodução “Memória Musical – Retratos de um Conservatório” Crédito: A Folha/Reprodução “Memória Musical – Retratos de um Conservatório”

Por mais de quatro décadas, a cidade se orgulhou de possuir o Conservatório Musical de São Carlos, em seu tempo o único estabelecimento de ensino artístico local oficializado pelo governo do Estado.

Sem apoio mais forte dos poderes públicos, o Conservatório sobreviveu heroicamente graças ao idealismo da professora Cacilda Marcondes Costa (1901-1995), responsável por um dos mais belos capítulos da cultura são-carlense.

Fundado no dia 3 de abril de 1947, o Conservatório Musical era uma aspiração do povo são-carlense ao longo da primeira metade do século passado. Várias tentativas foram esboçadas Anteriormente para dotar a então “Atenas Paulista” de uma escola de música – todas elas sem sucesso por uma série de fatores.

Como se sabe, a cultura jamais teve vida fácil no Brasil. Mas o Conservatório Musical de São Carlos não esmoreceu e se consolidou contra todos os obstáculos colocados em seu caminho. “Hoje o Conservatório é algo mais que uma simples escola de música, é indubitavelmente um verdadeiro templo da cultura são-carlense”, dizia o jornal “A Folha” cinquenta anos atrás, na edição comemorativa do dia da cidade em 4 de novembro de 1969.

O periódico contava a história da instituição que em 1952, após um período de fiscalização preliminar e com muito esforço, foi oficializada pelo Governo do Estado por meio de decreto publicado no Diário Oficial do Estado em 13 de maio daquele ano. Nessa luta foi determinante o apoio do professor Luís Augusto de Oliveira, então deputado estadual por São Carlos.

Em 1963, o Conservatório foi declarado de utilidade pública pelo município – num reconhecimento de sua contribuição à cultura. Porém, como o artigo do jornal registrava, “apesar das solicitações, o município apenas se limita a reconhecer e elogiar o trabalho do conservatório negando-lhe sistematicamente apoio”. “É o mesmo drama que enfrentou a extinta escola de Belas Artes que, apesar de oficializada pelo governo do estado acabou fechando”.

Cacilda Marcondes Costa era a responsável pela direção artística do Conservatório Musical de São Carlos e realizava seu trabalho com extrema dedicação. Diplomada pelo Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, discípula do consagrado musicista Agostinho Cantú, teve sua formação artística completada pelos professores Mário de Andrade, Savino de Benedictie Samuel Arcanjo. Deu inúmeros recitais em São Paulo e no interior do Estado tendo ainda se apresentado no famoso “Vesperais Chiafarelli-Cantu” em São Paulo. Também se apresentou em programa musical apresentado na Sala Chiaffarelli onde seu prioprietário Luigi fazia realizar saraus e recitais.

Como todo estabelecimento de ensino artístico oficializado pelo governo estadual, o Conservatório Musical de São Carlos se subordinava à Comissão Estadual de Música. Seu fiscal era o professor Antonio Munhoz, ilustre musicista são-carlense de destacada carreira na Europa, amigo de Mario de Andrade e Camargo Guarnieri.

O Conservatório, cujos diplomas eram reconhecidos pela Comissão Estadual de Música e Ordem dos Músicos do Brasil, não se restringia apenas ao ensino da arte musical. Exercia também no final dos anos 1960, notável atividade extracurricular, através de recitais, conferências, palestras e concursos. Anualmente promovia recitais de seus melhores alunos e realizava com frequência recitais com artistas especialmente convidados.

Na primeira década de existência, por iniciativa da instituição vieram a São Carlos a Orquestra Universitária da USP, os violinistas Scupinari e Robert Dlouhy, o pianista Alonso Anibal, o Coral Araraquarense e os conferencistas professor Moura Lacerda e Dr. Miguel Gonçalves da Silva.

Em 1959 o prestígio era tal que uma reportagem do jornal “Correio de São Carlos” publicada no dia 4 de Novembro incluía o Conservatório  no rol das principais instituições de ensino na cidade ? algo muito justo para uma instituição que, para estimular o gosto pela arte musical,  mantinha dois prêmios anuais: o Prêmio Professor Antonio Munhoz, atribuído ao melhor aluno e o Premio Celso Fontoura Costa, entregue nas formaturas ao aluno que completasse seus estudos totalmente no Conservatório.

Às suas expensas o estabelecimento mantinha bolsas de estudos concedidas anualmente a alunos reconhecidamente pobres.

Não houve em São Carlos quem tenha estado indiferente à importância do Conservatório ao longo de sua existência. Ou que não reconhecesse entre os fatores de seu sucesso o rigor pedagógico da direção e o legado musical transmitido às gerações que por ali passaram. Muitos de seus ex-alunos passaram a difundir a cultura musical nas diversas regiões do país.

Um olhar para a trajetória do Conservatório Musical em seus 44 anos, de 1947 a 1991, o revela por inteiro na tese de doutorado da professora e maestrina Rita de Cassia Fucci Amato no Programa de Pós-graduação em Educação da UFSCar. Sobressai nesse notável trabalho (transformado no livro “Memória Musical – Retratos de um Conservatório”) a figura solar da professora Cacilda, que estava com 90 anos de idade quando as atividades do Conservatório foram encerradas. Por meio de depoimentos de uma dezena de músicos da cidade, ex-alunos da instituição, e pesquisa em jornais de mais de cinco décadas, a maestrina resgatou significativa parte da história da música em São Carlos, inserindo-a no contexto da história da música, do piano e da educação musical no Brasil.

O trabalho reuniu publicações dos períodos locais “A Cidade”, “Correio de São Carlos”, “A Folha”, “O Diário” e “A Tribuna” reportando as atividades musicais do conservatório: convites, programas, fotos, recitais oferecidos à população e as muitas manifestações de apreço, carinho e respeito publicados em vários momentos da história da instituição.

O Conservatório tinha clientela predominantemente feminina oriunda não só de São Carlos como de cidades vizinhas como Araraquara, Ribeirão Bonito, Boa Esperança do Sul e outras, atraídas pelo dinamismo musical da professora Cacilda, que interpretava as peças de piano de maneira brilhante.

Rita de Cassia Fucci Amato ressalta a personalidade da diretora, talentosa artista e emérita educadora e seu acentuado espírito religioso: orava todo dia e lia trechos da Bíblia e não raro entoava trechos de cânticos religiosos. “Mesmo ao fundar o Conservatório dona Cacilda ainda não dispunha de piano, só podendo realizar seu intento com o auxílio de várias pessoas, entre elas a professor a Odila Belluci, que cedeu à amiga três salas de sua própria residência na avenida são Carlos esquina com rua 28 de setembro”. O Conservatório esteve instalado em outros três locais: nas dependências do Aero Clube, à rua 9 de julho, esquina da rua 13 de maio; na rua padre Teixeira, esquina da rua 9 de julho; e finalmente, à rua Marechal Deodoro.

O empenho de Antonio Munhoz, o inspetor pianista que foi professor em São Carlos por muitos anos, foi também determinante para o desenvolvimento do Conservatório também se desenvolveu.

O Corpo Docente contou com Serafim Batarce, José Roberto Camargo, Leonete Zambel, Maria de Lourdes Treviso, Irani de Oliveira e Alonso Aníbal.

Entre seus apoiadores esteve o deputado federal Ernesto Pereira Lopes, que destinou à instituição parcela de sua verba pessoal. O Conservatório era oficializado pelo governo estadual e expedia diplomas. Seguia os moldes do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, a começar pelos nove anos de duração do curso de piano.

Cacilda Marcondes Costa dedicou praticamente toda sua vida à música, mesmo em seu último mês de vida em 1995 ainda tinha algumas alunas.

Além de seu valor como musicista e mestra, nela se destacava o espírito de altruísmo: nada cobrava de alunos cujos pais não pudessem arcar com as despesas de matrículas e mensalidades e mantinha em média de quatro a cinco alunos nessas condições.

Ao longo de sua trajetória, o Conservatório com muita justiça mereceu atenção especial da imprensa local. Pois se existe uma tradição da qual São Carlos pode se orgulhar é de sua tradição musical– uma história na qual também atuou com destaque o maestro João Sepe – ao lado de outros semeadores de talentos que deixaram saudades.

Os frutos da fecunda atuação da professora Cacilda puderam ser o observados em 10 de novembro de 2010 na Oficina Cultural Regional Sérgio Buarque de Holanda durante o lançamento do livro Professora Rita, publicado pela Annablume Editora. Ali, diante da autora, ex-alunas e musicistas de reconhecido talento reverenciaram a memória da mestra. Maria Inez Botta, Diana Cury, Claudete Sacomano, Lilian Cornachioni Estrozi e Leila Patrizzi ao mesmo tempo renderam um tocante e merecido tributo àquela que desafiando todas as dificuldades com fibra, determinação e, sobretudo, amor – inseriu seu nome com letras maiúsculas na história musical da cidade.

(*) O autor é cronista e assessor de comunicação em São Carlos  (MTb 32605) com atuação na Imprensa da cidade desde 1980. É autor do livro “Coluna do Adu – Sabe lá o que é isso?” (2016).

Esta coluna é uma peça de opinião e não necessariamente reflete a opinião do São Carlos Agora sobre o assunto.

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