sexta, 19 de abril de 2024
Artigo Antonio Fais

Um Anel

23 Nov 2018 - 12h46Por (*) Antonio Fais
Um Anel -

Andando pela rua, deparou-se, como surgido do nada, com um garoto. A pressa não lhe permitia parar para esmolas, mas o garoto, por mais que ele se punha a desviar, estava bem a sua frente. Na mão esquerda bem fechada trazia algo. Deveria ser um objeto pequeno, pois sua mão era ainda de garoto. E não poderia ser uma arma, nem mesmo uma faca; no máximo um prego, estilete ou vidro, pensou. Era apenas um anel. “Eu queria lhe dar este anel...”, disse o garoto. “Eu não quero”. “Eu queria lhe dar este anel, mas o senhor tem que me dar algo em troca”. “Eu não uso anel, não gosto de usar nada. Uso apenas o relógio para não perder hora. Mas não gosto”, disse mostrando o relógio de ouro e recolhendo rápido o braço com medo de ser assaltado. Ele não queria um anel, mas sim uma solução aos triglicérides acima de 1.000, aos problemas na empresa cheia de funcionários incompetentes, a sua vida sentimental...  “Eu queria lhe dar este anel e o senhor me dá o relógio de que não gosta”. “Eu não quero o anel...”, disse alto, mas parou quando o menino abriu a mão. Era um anel simples, parecia de prata e tinha algo em relevo, apenas um desenho que fazia toda borda, embaixo não se fechava, de modo que pudesse ser ajustado a qualquer dedo. Deteve-se por algum instante, estendeu a mão para que o menino lhe entregasse o anel, pegou-o e pôs no dedo da mão direita, na mão estendida do moleque pôs o relógio e, atendendo o gesto do menino para se abaixar, agachou-se de modo que o menino alcançasse seu ouvido: “Sempre que olhar para o anel,  lembre-se de fazer uma pequena prece, em especial quando for parar uma atividade e começar outra”. Levantou-se, contemplou novamente o anel, mudou para a mão esquerda e quando procurou de novo pelo menino, viu que ele seguia devagar, brincando com o caro relógio largo em seu pulso.  Em casa, olhando para o anel, adormeceu.

Dormiu com há muito não dormia. O anel estava no dedo anular da mão esquerda. Acordara com fome. É gostoso acordar com fome, parece que podemos comer o mundo. Antes de se levantar pensou no ocorrido, sem fazer conta do prejuízo de trocar um relógio de ouro por um anel. Um anel e um conselho. Deteve-se a olhar a comida antes de engolir correndo como sempre fazia e durante este tempo não pensou em mais nada além do café da manhã. Saciada a fome, voltaram-lhe os problemas do dia anterior: saúde, empresa, a vida...

O novo objeto no dedo, voltou-lhe à mente ao pegar no volante. Pensou no caminho, na pressa, no trânsito, mas, como havia dito o garoto, pediu-se calma e paciência. Fazia tempo que não chegava à empresa assim, tendo comido na medida certa e sem o estresse do caminho. Os funcionários meio que se assustavam com o bom dia diferente. Sentou-se em sua sala dividindo a atenção em seus exames e a situação da empresa.

“O senhor pediu para me chamar?”, perguntou o gerente. “Sim. Você tem alguma sugestão para resolver os problemas que temos com os funcionários, com atendimento?”. O gerente deteve-se, entre assustado com a pergunta e pensativo se fazia a mesma sugestão ignorada das outras vezes, mas seguiu: “Todos nossos funcionários são clientes internos de nossa empresa: usam banheiro, refeitório, a administração atende à produção, ao departamento de vendas e assim por diante. Antes de qualquer treinamento, temos que mudar o atendimento interno... começando pela alta direção da empresa, inclusive repensando instalações de banheiros, refeitórios, atendimento telefônico interno”. Enquanto olhava o anel, ouvia essas palavras como nunca lhes tivessem sido ditas antes. E, girando o anel em seu dedo, disse: “Crie um grupo de trabalho para implementar essas mudanças. Quero isso funcionando em um mês”. O gerente, ainda inseguro do no chefe, perguntou: “São exames médicos em sua mão?”. “Sim. Triglicérides acima de 1.000”. Frente ao desânimo das palavras, o gerente aproveitou a deixa: “Isso é bem simples de resolver. A prioridade zero é o repouso: além de dormir, procure pausas para descansar durante o dia; depois vem a alimentação: coma várias vezes por dia, mas devagar, sempre vendo como e o que está comendo; depois algum exercício, de preferência logo cedo, antes de vir trabalhar; e, finalmente, corte de sua vida jornais e televisão. Em 3 meses está resolvido seu problema”. Ele apenas riu ao subordinado, deixando claro que ia seguir as receitas para empresa e para si. “Ah. Sempre que for mudar de atividade, faça uma pausa e pense  apenas na nova tarefa”, concluiu.

Passaram-se alguns meses. Em todo momento ele contemplava o anel que lhe parecia mágico. A empresa entrara nos eixos, os índices médicos estavam praticamente normais – era outro homem.

Foi quando deparou-se novamente com o menino, ou parecia ser o mesmo, pois não olhara a face no primeiro encontro. Ele vinha com a mão esquerda fechada, como da primeira vez. “Eu queria o anel de volta”. Durante algum tempo ficou olhando para o garoto, como se não entendesse o que foi dito, ainda mais surpreso do que no primeiro encontro. “E o que vai acontecer com tudo que consegui neste tempo?”. O menino respondeu rindo: “Isso é apenas um anel. Preciso dele para dar para outra pessoa”. Tirando o anel do dedo, ainda perguntou: “Você me devolve meu relógio?”. “Não o tenho mais. Dei a um senhor alto, gordo, ruivo... da mesma forma que lhe dei o anel”. E novamente o menino se pôs a andar.

Ele, em um passo mais lento, foi atrás do menino que sumiu ao dobrar a esquina. Pensava em tudo que aconteceu. Não tinha mais o anel para contar e mostrar; a única prova que tinha da história era a ausência de seu relógio.

Ao dobrar a esquina, depara, a poucos metros, com um senhor de barba e cabelos vermelhos, em seu braço esquerdo reluz dourado um relógio, mas, antes que pudesse abordá-lo, corre um garoto a sua frente, crava uma faca na barriga do homem e mais rápido que ele pudesse gritar, toma-lhe o relógio, fugindo em disparada. Ele segue seu passo normal em direção a vermelhidão dos cabelos e o sangue na rua. Passa direto, como se nada houvesse acontecido, apenas olha para seu pulso e mão, sem relógio, sem anel.

Esta coluna é uma peça de opinião e não necessariamente reflete a opinião do São Carlos Agora sobre o assunto.

 

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