quinta, 25 de abril de 2024
Artigo Rui Sintra

Sem um pingo de combustível

04 Jul 2020 - 06h00Por (*) Rui Sintra
Sem um pingo de combustível -

Sempre tive uma paixão enorme pela aviação e se não tivesse seguido a área de jornalismo, com certeza seguiria a profissão de piloto de aeronaves, mesmo sabendo que iria ser muito difícil devido à minha total ignorância em matemática, que ainda hoje perdura. Com meus 16 anos e cerca de um ano antes do falecimento de meu pai, ele me levou a visitar um pequeno aeródromo no Alentejo, em Portugal, pois sabia que eu era um apaixonado pela aviação. Claro que nesse aeródromo o tráfego era de aeronaves pequenas, monomotores, mas já dava para eu sentir o clima, para me entusiasmar. Meu pai tinha muitos amigos naquele aeródromo e não foi difícil me inserir dentro da torre de controle, o que para mim foi uma aventura fantástica observar toda a movimentação na pista, ouvir as instruções de cada controlador para o conjunto de aeronaves que tinha sob sua responsabilidade, o decolar e pousar suave dos pequenos aviões. Eu estava extasiado, no meio de um ambiente que, ao contrário do que se poderia pensar, era descontraído, sem estresse, até mesmo alegre. Os controladores desempenhavam tranquilamente seu trabalho, e nos segundos ou minutos que tinham de intervalo entre uma e outra aeronave falavam do cotidiano - família, gastronomia, vinhos, etc. Eu estava deslumbrado!!! Em determinado momento, um dos controladores pediu silêncio aos colegas e, retirando os fones, aumentou o volume de sua consola e disse: “Tem alguém tentando falar, mas a comunicação fica cortada”. De repente, uma voz clara surgiu da consola: “Controle Fox Papa Ferreira do Alentejo - Cessna 2315 - Piloto estudante 12908/73 - sem combustível - Peço instruções”. Houve uma espécie de calafrio generalizado na torre de controle e todo o mundo pegou em binóculos tentando enxergar em todos os quadrantes do horizonte a pequena aeronave. Acionando de imediato os sistemas de segurança - bombeiros e equipes de resgate -, o operador manteve o viva-voz ligado, e tentando aparentar calma na voz comunicou ao piloto: “Roger 1325. Aqui é Fox Papa Ferreira do Alentejo. Ainda não consegui visualizar sua aeronave no radar. Veja se tem avaria no ACARS (sistema que transmite os dados da aeronave para o controle no solo). Qual a distância que está do aeródromo, câmbio?”. Sem resposta. Novamente, o controlador entrou em contato com o piloto: “1325 - aqui é Fox Papa Ferreira do Alentejo - Informe sua posição e reduza a velocidade. Quando estiver alinhado com a pista, desligue o motor e proceda a descida lenta, planando, para pouso. Câmbio?” O piloto não respondeu. Uma vez mais o controlador entrou em contato com o jovem piloto, enquanto todos na torre mantinham silêncio e olhavam para o céu. “1325, aqui é Fox Papa Ferreira do Alentejo. Informe sua altitude e localização, pois não estamos detectando sua aeronave no radar. Tem contato visual com a pista, câmbio?” Um ruído de interferência no rádio e a voz do piloto finalmente se fez ouvir, para alívio e curiosidade de todos. “Controle FP Ferreira do Alentejo - Cessna 2315 - Piloto estudante 12908/73... Bem... eu na verdade estou na pista 4, aguardando que venham completar o tanque para poder fazer a minha primeira aula sem instrutor, câmbio?”. Nunca mais esqueci este episódio bizarro.

É óbvio que o piloto não era eu!....

(*) O autor é Jornalista profissional / Membro da GNS Press Association (Alemanha) / Correspondente internacional freelancer. MTB 66181/SP.

Esta coluna é uma peça de opinião e não necessariamente reflete a opinião do São Carlos Agora sobre o assunto.

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