O homem estacionou o carro e saiu rápido. Parecia com pressa. Mal tinha dado alguns passos do carro quando ouviu chamar:
- Senhor.
A voz não era alta nem baixa. O homem que o chamava era um guarda com cerca de dois metros de altura, negro, daqueles que a pele beira um azul-marinho, os dentes muito brancos traziam consigo um sorriso benevolente. Tinha, no entanto, um tom óbvio somado a algo de impaciente, como se pusesse a falar pela milésima vez a mesma coisa à mesma pessoa.
- O Senhor não pode estacionar aí.
- Por que não?
A reposta demorou a vir. Não por que ele não a soubesse, mas apenas não estava acostumado aos porquês. Não podia porque não podia, oras. Por quê? Porque é a lei. E, no fundo, o seu papel não era dizer os quês, apenas fazer cumprir a lei. Seu primeiro instinto foi o de perguntar se o homem não havia visto a placa bem onde estacionara o carro, mas, em curso recente de aperfeiçoamento no trato com o público, aprendera que não se responde pergunta com pergunta sem que se faça o interlocutor parecer meio bobo e causar uma discussão diferente dos objetivos iniciais. Então, apontando a placa diante do carro, disse:
- As vagas aqui são reservadas para os Vereadores.
- A placa diz: Reservado a Câmara Municipal.
- Então.
- Eu vou à Câmara.
- Mas as vagas aqui são apenas para os Vereadores, assessores e quem trabalha na Câmara.
- Mas a placa não diz isso.
- Não diz, mas é. O Senhor pode parar o carro ali em frente.
- Mas naquela vaga tenho que pagar a Zona Azul.
- Como todo cidadão comum.
- Mas eu só tenho notas de cem reais. E vou ficar menos de meia hora na câmara - disse mostrando uma nota de cem, que conferiria uma certa credibilidade à história, além de mostrar que ele não era um “cidadão comum”.
- Sinto muito. Mas realmente o Senhor não pode parar aqui. As vagas são reservadas.
- E por que os Vereadores têm vagas reservadas? Por que não pagam Zona Azul como eu? Ou como o Senhor? Onde o enhor parou seu carro?
- Hoje eu vim de ônibus. Mas quando venho de carro paro a cinco quadras daqui: lá não tem Zona Azul.
- E por que os Vereadores e assessores podem parar sem pagar e eu e o Senhor não podemos? Por que têm vagas reservadas à Vigilância Sanitária, ao Departamento de Planejamento e outros tantos que deveriam estacionar como qualquer cidadão? – Falava agora certo de que conseguiria parar pelo tempo necessário na vaga em que estava.
- Isso eu não sei. Só sei que eu não posso parar aqui e o Senhor também não. Por favor, tire seu carro ou terei que multá-lo.
- E aquele carro? – Dizia apontando para um fusca verde que tinha na porta o nome de uma emissora de rádio.
- Imprensa pode!
- Mas não é Vereador ou funcionário da Câmara. Eu tiro o meu, mas ficarei atento toda vez que vier aqui.
Ao dizer isso, em tom fiscalizador, tirou do bolso uma câmera digital que teria o poder de perpetuar as atitudes do guarda.
- É! O Senhor tem razão. Não vai poder mais.
E o homem retirou o carro. Recolheu algumas moedas na porta do carro, pôs o cartão da Zona Azul e dirigiu-se à Câmara Municipal se entreolhando com guarda, como se ambos, a partir de agora, soubessem algo que não sabiam antes. Nisso, na mesma vaga, pára um carro com motorista. O guarda vai até o carro e diz:
- Senhor! Não pode estacionar aqui. A vaga é apenas para Vereadores.
- Mas eu vou à Câmara – disse o senhor gordo, com olheiras e cabelo branco que saiu do banco detrás.
- Mas a vaga é só para Vereadores e assessores. Sinto muito, mas não pode.
- Mas eu sou o Prefeito da Cidade.
- Mas a lei é Lei. A vaga é só para Vereadores e Assessores. O Senhor pode parar naquela vaga ali, mas tem que pagar Zona Azul.
Embora o rosto não mostrasse, eu, narrador, sei que havia ali um tom irônico nesta última frase.
Bem, aqui, caro leitor, a história pode tomar rumos distintos. Eu aponto dois finais e possíveis conseqüências:
Final 1 (o menos provável): O Prefeito retira o carro do local e, no dia seguinte, baixa um decreto que proíbe vagas reservadas, exceto aos serviços de emergência. Determina que todos os funcionários públicos, inclusive policiais, a partir de então, respeitem todas as leis do município. Este final pode derivar para dois outros: em (1.1) a Câmara ameaça cassar o Prefeito e reverte o decreto; ou em (1.2) consegue uma verba extra para si e todos assessores chamada Complemento Salarial de Estacionamento que, por um erro de cálculo, assume que os Vereadores e Assessores trabalham 24 horas por dia 366 dias por ano, num total de mais R$ 512,40 ao mês por funcionário. Esses ainda podem resultar em (1.1.1) o Prefeito recua e fica tudo como era; ou (1.1.2) o Prefeito mantém sua posição e é cassado pela Câmara por (1.1.2.1) realmente haver corrupção em seu governo; ou por (1.1.2.2) boatos que nunca se provarão.
Final 2: o Prefeito ignora a ordem do guarda e deixa o carro no local. O Guarda, sem porque, é transferido e perde o comissionamento de serviços à Prefeitura.
Nesta hipótese, ele pode processar o Poder Público por discriminação racial e acertar a vida.
(*) O autor é escritor/filósofo, especialista em Aprendizagem, Linguagem e Escrita Criativa