terça, 23 de abril de 2024
Resplandecente Alma

O luto e a luta que os livros não ensinam

22 Jan 2021 - 12h50Por Anaísa Mazari
O luto e a luta que os livros não ensinam -

Em abril de 2020 nesta mesma coluna, escrevi acerca do Luto seguindo a linha costumeiramente observada na literatura, de descrever as fases e sensações emocionais experimentadas por quem passa por perdas significativas de coisas ou pessoas por encerramento de ciclos ou morte, além de estratégias generalistas de enfrentamento para a superação.Após passar por uma experiência pessoal de perda significativa recente, outros aspectos relevantes se presentificaram – no sentido da presença e de serem considerados verdadeiros presentes, no sentido das dádivas e riquezas que se tornam instrumentais para seguir em evolução para uma caminhada que continua repleta de desafios, mas que pode ser trilhada com potência sem o desperdício dos aprendizados necessários.

É certo que na teoria e na prática, as formas de viver o luto estão associadas às especificidades da perda, intensidade do vínculo e relacionamento com a pessoa falecida ou objeto perdido (como no caso de perda de elementos essenciais da rotina como emprego, por exemplo), como as perdas acontecem, se de forma repentina ou já esperada etc. Atrelado a todas essas especificidades “externas”, o mundo interno de quem vivencia o luto é parte preponderante na condução e evolução do processo. De formas aprendidas, todos nós temos visões previamente constituídas sobre a morte, a dor, a solidão que emerge quando a perda acontece. Também somos cercados de entornos - cultural e sistêmico familiar - que nutrem expectativas sobre como lidar com a ausência – eterna, no caso da morte. As expectativas costumam ser ainda mais elevadas quando se tem uma função profissional de cuidado como no meu caso, que sou psicóloga. E afirmo que o luto somente ganha características de atravessamento saudáveis quando se deixa de atender expectativas externas, culturais ou familiares.Não se está na vida para atender expectativas de ninguém. É libertadora essa consciência e a permissão interna de viver sem a limitação ditada pelo que os outros vão achar, pensar, se aprovarão ou não atitudes e sentimentos tão nossos – que dizem respeito muito mais a eles mesmos do que a nós. Tornamo-nos, então, capazes de olhar prioritariamente para nossas próprias necessidades e também suas vicissitudes – aquelas alternâncias entre o que se deseja e do que se precisa, que devem ser muito bem acompanhadas em cada estágio da vida, tarefa possível apenas a nós mesmos através da autorresponsabilidade.

Aliás, se existe alguma constância na experiência de luto são justamente as alternâncias que podem apresentar ciclos diferenciados para cada indivíduo. No meu caso, cada dia é um dia. E experimento, quase sempre no mesmo dia, desde as melhores sensações, lembranças e prazeroso carinho pela minha amada avó e por tempos bonitos que vivemos até descer no poço da pungente dor, resquícios de um processo tão complexo e difícil relacionado ao final de vida dela, cenas hospitalares dos últimos momentos, da saudade dolorosa de saber que muitas coisas se vão quando uma morte acontece e que nunca mais a verei, ao menos nessa jornada. Viver tantas emoções em espaços de tempo tão curtos, desde as experiências concretas de cuidado até as sensações internas durante o processo da morte e após a perda, me fez e faz aprender a valorizar cada momento de alegria.Saborear alimentos e bebidas prediletos, tomar um banho demorado, descansar o corpo na cama após um dia de trabalho, divertir-me nas horas vagas do trabalho na presença de pessoas queridas, sentir a brisa no rosto em um dia de calor, tomar café, ou seja, coisas teoricamente “corriqueiras” e cotidianas se tornaram momentos únicos e aproveitados até a última gota como outrora não aconteciam.

Também é importante respeitar e expressar quando dói. A tendência cultural e costumeiramente transmitida é de que a dor precisa ser evitada, quando na realidade ela faz parte e deve ter seu lugar, possuindo um papel importante quando acolhida e expressada, podendo assim pertencer. Dar aos momentos doridos essa possibilidade de fazerem parte, com a consciência de que passarão e de que deles podem advir preciosas oportunidades de crescimento e evolução, abre os portais para as capacidades de transmutação cada vez mais elaboradas, resultando em fortalecimento e qualidade de vida emocional. Evitar o encontro com a dor não a faz deixar de existir e sua permanência não devidamente expressada pode trilhar caminhos de adoecimento que se tornam obsoletos quando simplesmente compreendemos que a dor não é uma vilã, masum sentimento que demanda acolhimento e cuidado, natural em um processo de perda.

Lidar com as próprias fragilidades, “desagradar” aqueles que têm expectativas sem a capacidade de empatia, lidar com a manifestação da arena das neuroses dos outros que muitas vezes não se furtam de trazerem a receita mágica e pronta para lidar com os sentimentos – quase sempre receitas de repressão das emoções ou receitas de não ser demasiadamente feliz se você acabou de perder alguém – é um desafio grande para as pessoas enlutadas que já estão travando uma grande batalha. Mas ensina – como os livros não fazem – o quanto precisamos trilhar o caminho da vida apenas (e não é pouco) com as nossas próprias bagagens. Cada um carrega o que é seu e cuida disso da maneira como acredita, consegue e como aprende a cuidar. Nem tudo o que vem dos outros, por mais que esteja revestido de boas intenções, precisa ser necessariamente recebido ou guardado dentro de si. Entregar de volta ou simplesmente seguir é preciso, ouvindo a própria alma, que é o que dará a direção – a sua direção - para se renovar após a perda que pode não ser a mesma direção que a minha ou a de outras pessoas que perdem. Certa vez, uma amiga que perdera o filho por suicídio compartilhou comigo que o luto era um processo muito solitário. E hoje vejo o quanto ela foi certeira nessa percepção. Após os ritos fúnebres, muito importantes para a elaboração da partida, as pessoas enlutadas vivem solitariamente processos muito singulares de construção de novos significados da história vivenciada, dor, amor, saudade, fragilidades, nova identidade, novas potencialidades, vontade de viver diferente após a visita da morte. Nunca mais seremos os mesmos. E sim, podemos vislumbrar ser ainda melhores, dentro de nossas próprias evoluções.

Com muita maestria e sensibilidade, Drummond fez o poema Memória que descreve lindamente a beleza da nossa capacidade de eternizar o que se perdeu concretamente, mas que com a elaboração do luto, permanece especialmente vivo
dentro de nós. Pretendo continuar a caminhar para este destino da trajetória. E concomitante e após esse destino, haverá outros. Sem perder nenhum detalhe da paisagem.

Amar o perdido, deixa confundido, este coração.
Nada pode o olvido, contra o sem sentido, apelo do Não.
As coisas tangíveis, tornam-se insensíveis, à palma da mão
Mas as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão.


 

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