sexta, 19 de abril de 2024
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MEMÓRIA SÃO-CARLENSE – Uma banda chamada Doce Veneno

02 Mar 2018 - 03h51Por (*) Cirilo Braga
Foto: Arquivo de Wagner e Neto Muccillo - Foto: Arquivo de Wagner e Neto Muccillo -

Uma história iniciada em 1976 tem continuidade nos acordes da Banda Doce Veneno a cada apresentação em São Carlos ou onde quer que os seus cinco componentes subam ao palco para encantar o público com uma profusão de flashbacks.

Uma história ou as histórias, diga-se. Elas são muitas e seguem sendo contadas ao longo desses 42 anos, desde que cinco meninos transformaram o despretensioso grupo Twnyp (nome formado pelas iniciais dos integrantes da primeira formação) numa orquestra-show e a partir de 1982 criaram a Doce Veneno.

Os primeiros acordes, na verdade, foram ouvidos em Ribeirão Bonito no distante ano de 1973. A data e o local do nascimento foi 8 de junho, na Escola Estadual Pirajá da Silva. Era então apenas uma brincadeira entre amigos, pela qual os rapazes foram pegando gosto. Até hoje se diz que aquele foi um ano em que a MPB se reinventou. Nas vitrolas rolava todo tipo de som e esse não era só mais um detalhe quando tiveram a ideia de dar prosseguimento àquela curtição e começaram a tocar em festas de amigos, pizzarias e restaurantes sem receber nada; era de fato apenas pura diversão.

Uma diversão na qual o maestro Páris Muccillo (1925-1979), imigrante italiano e pai dos band leaders Wagner e Neto, viu qualidade musical e decidiu investir no talento dos garotos.

Em 1976 o primeiro baile "oficial" aconteceu na cidade de Borborema, no dia 9 de junho, quando ninguém podia crer que acabava de nascer um conjunto musical consistente, que décadas mais tarde viria a se tornar um dos mais longevos do interior do país.

Quando o Maestro Páris faleceu aos 54 anos em 1979 (hoje ele, fundador da Banda 'Primeiro de Maio' dá nome a um coreto na praça em Ribeirão Bonito), seus filhos e outros três amigos resolveram profissionalizar a banda. Já então dominavam as técnicas de tocar e cantar e estavam firmemente dispostos a botar o pé na estrada, ainda que o início tenha sido muito difícil, como se recordam Wagner e Neto - hoje respectivamente com 58 e 57 anos, únicos remanescentes da primeira formação.

Wagner nos teclados e voz, Neto no saxofone, percussão e voz, se fazem acompanhar atualmente do baterista Sérgio, de 57 anos, que entrou na banda em 1981, Claudinho (47 anos, contra-baixo e voz) que ingressou em 1991 e Mak (45 anos, guitarra e voz), na Doce Veneno desde 1994. Todos eles músicos de formação e hoje dedicados ao ensino musical, que intercalam com a rotina de shows.

ECLETISMO MUSICAL

A perseverança e os esforços dos primeiros tempos deram frutos; a dupla pioneira diz que sempre sonhou continuar a banda "até que assim Deus permita".

Fazendo faz jus ao fato de ter nascido numa, década caracterizada pela mistura de estilos em todos os segmentos - na música em especial - o grupo se diferencia pelo seu ecletismo musical. Toca todos os estilos, atualmente com um repertório composto por mais de 5000 canções, sem contar músicas que são chamadas de "descartáveis". Nada fica de fora.

O nome definitivo, Doce Veneno, só passou a ser a designação definitiva da banda a partir do ano de 1982 e surgiu como uma homenagem a Erlon Chaves, maestro, arranjador, pianista e cantor falecido em 1974 aos 40 anos.

Em 1970, durante o V Festival Internacional da Canção, transmitido pela TV Globo, ele regeu um coral de quarenta vozes, que depois passou a chamar-se Banda Veneno. Erlon sofreu um ataque cardíaco fulminante quando numa discussão defendia Wilson Simonal, combatido pela mídia e parte do mundo artístico.

Curiosamente os garotos da Banda Doce Veneno viriam a conhecer Wilson Simonal no ano de 1983. No ano seguinte, emprestavam seus equipamentos para uma apresentação da banda carioca "Barão Vermelho" no Clube Cultura Artística, em Campinas. A Doce Veneno animou o baile e Cazuza e seus amigos, no auge, fizeram em seguida um grande show.

PÚBLICO FIEL E BAILE JEANS

A lista de cantores e artistas com quem os músicos de Ribeirão Bonito interagiram inclui, entre outros, Alcione, os Agnaldos Timóteo e Rayol, Grupo Roupa Nova, Nelson Gonçalves, Jerry Adriani, Jair Rodrigues e Jessé - que acompanharam em Guaratinguetá no último show do cantor de "Porto Solidão" e outros sucessos.

Até o ano de 1992, o quartel-general da banda era ainda em Ribeirão Bonito. Com shows quase diários, metade deles em São Carlos, a decisão de mudar-se para a cidade vizinha foi acertada. Aqui, a Banda Doce Veneno encontrou um solo fértil para construir sua carreira e conquistar um público fiel.  Decorrência natural do trabalho dos músicos que tocaram em todas as edições do Baile do Jeans da ABASC de 1984 até 2000. "Só quem esteve nesses bailes vai entender que foi uma época que ninguém esquece, jamais", diz Wagner sobre a legendária promoção do clube da Rua Jesuíno de Arruda. "Guardamos as lembranças do salão sempre lotado. Uma alegria que contagiava a cidade toda", Neto acrescenta.

PROJETOS MUSICAIS

A variedade de formações e influências musicais brota das experiências somadas pelos músicos, desde a formação erudita (no caso de Wagner Muccillo) até chegar ao rock and roll. No cardápio dos shows, nunca faltam canções imortais de todos os gêneros: Theme from  New York, New York / Hello Detroit, Jump, Another Brick In The Wall ,Não deixe o samba morrer e tantas outras que, independente da ocasião, sempre agradam.

Chegando ao número de 6.000 shows, a Banda Doce Veneno já gravou um CD autoral em 1995 e seu maior show ocorreu na cidade de Aparecida para um público estimado de 40.000 pessoas.

Hoje realizando uma média de doze shows mensais e fazendo valer a versatilidade, convertida em sua principal marca, Doce Veneno já se apresentou no antigo Palace, em São Paulo, então a principal casa de shows do país e em outros estados como Goiás e Rio de Janeiro e realizou projetos musicais como "Tunel do Tempo", "Noite do K-7", na antiga ABASC, "Tributo ao Clube da Esquina" e o show "Aplauso", homenageando clássicos do Rock, com versões de Pink Floyd, Yes, Led Zepelin e outros. Para quem nasceu ouvindo as canções dos Beatles em vinil e percorreu os anos dourados da melhor MPB não faltam motivos para celebrar os grandes momentos da música.

HISTÓRIAS CURIOSAS

Uma banda com tanta rodagem certamente coleciona episódios curiosos. Alguns, embora verdadeiros, parecem anedotas.

No centenário do Corinthians, em 2010, a Doce Veneno foi contratada para tocar no Parque São Jorge, numa noite que tinha tudo para ser inesquecível como foi: ao chegar lá, os músicos depararam com uma outra banda montada no mesmo local,ignorando que houvesse outro grupo musical agendado para a mesma data e horário. Desfeito o mal entendido, era mesmo a Banda Doce Veneno a contratada para se apresentar; os músicos que estavam lá éramos que tocavam corriqueiramente no local, mas naquela vez tiveram de desmontar em tempo recorde toda a estrutura de som e luz (que era muito grande) e depois a Doce Veneno fez a montagem de seu equipamento para iniciar o show.Tudo correu tão bem que no final Wagner se confessou palmeirense a um segurança brutamontes que pediu-lhe sigilo ao também revelar que era torcedor do arquirrival.

Num showmício na cidade de Bragança Paulista, o candidato a prefeito que contratou a Banda Doce Veneno se chamava Zé de Lima. O pessoal de apoio e os assessores do candidato recomendaram que os músicos ficassem à vontade quanto ao repertório, com apenas uma única restrição de que em hipótese alguma falassem o nome do outro candidato ou tocassem o jingle dele - uma música de sucesso na época.

Os músicos tranquilizaram a assessoria garantindo que não tocariam a música do adversário, até porque desconheciam seu nome e porque não se sabia o nome do outro candidato. Showmício lotado, tudo aconteceu dentro dos conformes até que lá pelas tantas, em meio a uma brincadeira, Wagner gritou bem alto: "Jesus!!"  Era precisamente o nome do candidato adversário, Jesus Adib Abi Chedid.

FÓRMULA DA LONGEVIDADE

E qual seria o segredo para uma viagem de tanto tempo tocando nos bailes da vida? "A banda sobreviveu porque a consideramos não como uma empresa, mas sim como uma extensão do nosso lar. Levamos para a banda o mesmo ambiente e educação que temos na nossa casa", afirma Wagner. "O grande segredo é o entrosamento pessoal, a compreensão, o respeito e a   tolerância entre os membros do grupo".

A explicação para o sucesso dos flashbacks está na convicção de que as músicas das últimas duas décadas serem descartáveis e consideradas de pouco conteúdo. "As músicas principalmente dos anos 60/70/80 são de alta qualidade musical. Ficaram na memória das pessoas e marcaram de alguma forma a vida de todas elas" diz Neto.

Acrescente-se a memória afetiva de tantas pessoas que acompanharam a trajetória da Banda Doce Veneno sendo contemporâneos de seus integrantes, vendo passar o mesmo filme e cantando junto com eles as canções que sempre quiseram ouvir.

Na introdução do Almanaque Anos 70, publicado pela Ediouro, a jornalista Ana Maria Bahiana, diz sobre aquele período, que em diversão foi uma pré-estreia dos anos 80: "Uma coisa interessante acontece quando nos abandonamos assim tão completamente ao voo do instante: ele assume as características do sonho algo muito nítido, guardado numa outra realidade que não conseguimos mais habitar inteiramente, mas temos certeza de que sempre existiu".

As apresentações da Banda Doce Veneno, de certa forma, reafirmam essa certeza.

Foto: Divulgação

(*) O autor é cronista e assessor de comunicação em São Carlos com atuação na Imprensa da cidade desde 1980. É autor do livro "Coluna do Adu - Sabe lá o que é isso?".

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