quinta, 25 de abril de 2024
Memória São-carlense

“Chico da Tarde” incorporou o espírito da imprensa de seu tempo

13 Set 2019 - 07h00Por (*) Cirilo Braga
“Chico da Tarde” incorporou o espírito da imprensa de seu tempo - Crédito: Álbum de família Crédito: Álbum de família

Há pouco tempo vi uma fotografia de Francisco Fiorentino, personagem de proa da história da imprensa de São Carlos. De sua personalidade e trajetória, ao longo do tempo ouvi relatos marcantes de pessoas que me davam ideia de quem foi o popular “Chico da Tarde”. Um homem afeito aos desafios de seu tempo, cuja imagem no retrato não me causou surpresa: a expressão serena, um leve sorriso, trajando paletó e gravata sob um chapéu típico de sua época. Tal qual eu o imaginava.

Quando alguém incorpora o nome de seu empreendimento, este é um sinal de estar no caminho de se tornar uma lenda. Foi o que se passou com ele, identificado anos a fio com o jornal que manteve de forma heroica. Embora não redigisse, sabia reunir os maiores intelectuais da cidade em torno do projeto de informar e conscientizar o povo acerca dos acontecimentos de seu tempo. E o fez durante décadas.

Célebre comissário de menores, Francisco manteve o jornal “A Tarde” zeloso quanto a um patrimônio tão caro inclusive aos dias de hoje: a credibilidade. A população tinha a certeza da veracidade de tudo quanto fosse veiculado pelo velho órgão de imprensa.

Seus familiares e amigos mais próximos testemunhavam a generosidade de Chico, que acolhia moradores de rua para refeições em sua casa. O homem carrancudo e de poucas palavras, tinha também o senso de repórter e no jornal desempenhava praticamente quase todas as funções, até mesmo de entregador nos pontos mais distantes, o que fazia no seu bem conservado e vistoso “Buick”, como descreveu Octavio Carlos Damiano, que iniciou no jornalismo trabalhando na redação de “A Tarde”.

Ali pontificavam os cronistas Helvidio Gouvêa, que assinava “Hélio Gomide”, Pedro Fernandes Alonso, “Pedroso Floreal” e também Ítalo Paino (Chulipa) e Anita Censoni, a Tânia, pioneira do colunismo social. O timaço era liderado pelo erudito Gouvêa exibia sua vasta e eclética cultura, de quebra ministrando verdadeiras aulas de redação. Muitas pessoas assinavam o jornal só para ser seus artigos.

No antigo Café do Centro, atual Farmácia Raia, na Avenida São Carlos, “A Tarde” costumava manter um placar para divulgar as suas edições. E se no decorrer do dia surgisse algo inesperado, Chico se apressava em divulgar a informação colando uma pequena nota no placar, em especial se fosse de falecimento. Damiano redigiu um desses “furos”, ditado de viva voz pelo autor.

No livro “Caminhos do Tempo”, Damiano recorda que nos tempos de Chico da Tarde os moradores de São Carlos se conheciam e os três jornais locais – Correio de São Carlos, A Cidade e A Tarde - era aguardados com ansiedade pelos leitores, sempre ávidos por novidades.

“Seus proprietários eram pessoas conhecidíssimas em São Carlos, que se esforçavam para manter os seus jornais sintonizados com os anseios da comunidade; os três mantinham uma cordial rivalidade, que resultava benéfica aos seus leitores e à própria cidade como ocorreu na introdução da linotipo, comprada inicialmente pelo Correio, depois ela A Cidade, que adquiriu equipamento mais avançado e finalmente pela A Tarde, que jamais iria ficar à margem de tão grande avanço”, relatou o jornalista. Quando Nicola, irmão de Chico e dono do jornal “A Cidade” comprou sua Intertype operada por Flávio Wellichan -  um mago das oficinas -, ele não sossegou enquanto não adquiriu a sua própria máquina de compor. Inovação que tinha orgulho de mostrar a quem quisesse ver, deixando claro que a comprara à vista, com dinheiro vivo.

O histórico da família Fiorentino, de contribuição à imprensa e ao progresso da cidade, remonta à chegada do imigrante italiano Antonio Fiorentino a São Carlos nos últimos anos do século 19. Aqui, Antonio exerceu diversas atividades no comércio e indústria locais, como proprietário de uma pequena fábrica de macarrão, tendo sido ainda funcionário municipal.

Mas foi mesmo na imprensa que gravou seu nome na história, como fundador de dois jornais que circularam durante décadas, “A Tarde”, lançada em 4 de julho de 1914 com a ajuda de seus filhos Francisco e Nicola, e em 1927, “A Cidade”.

Ambos trabalharam na oficina do jornal que estava sob a responsabilidade de Nicola, um hábil mecânico, cabendo a Francisco ajudar o pai na parte comercial além de pequenos encargos ligados à redação.

Antonio tinha tino comercial e aptidão para o ofício. “Vigilante e lutador”, como o descreviam seus contemporâneos, estava sempre disposto a defender os interesses da população, angariando por essa causa o elevado prestígio que o jornal conquistou na época.

Nem tudo, porém, foram flores no caminho de “A Tarde”. Houve também sérios perrengues como o ocorrido durante a chamada “Revolução Esquecida” de 1924 quando a cidade de São Carlos foi invadida por forças revolucionárias.  Após o retorno à normalidade, foi criticada na Câmara Municipal a atitude do jornal, que se colocou incondicionalmente ao lado dos revoltosos. A decisão causou descontentamento entre os membros do Partido Republicano Municipal, visto que “A Tarde”, como constava em seu próprio cabeçalho, era o órgão oficial da agremiação. A partir daí os dirigentes ordenaram que dizeres alusivos ao partido fossem eliminados.

Antonio Fiorentino se desligou de “A Tarde” quando fundou ao lado de Nicola “A Cidade", que começou a circular em 3 de janeiro de 1927. Ali permaneceu até o seu falecimento, quando o periódico foi assumido por Nicola.

Francisco continuou em “A Tarde” e, de tão incorporado a ela, tornou o título de publicação seu apelido.

No final dos anos 30 quando Eneas Camargo (1919-1964) começou a escrever no jornal - então trissemanário – quem dava as cartas por lá era “Totó da Tarde”, filho de Chico, que era também funcionário do Estado. A sucessão dos Fiorentino teve entre os colunistas Antonio Fiorentino Neto, filho de Totó, que criou uma coluna que marcou época na imprensa local: “Carnaval, Carnaval pela frente”.

Entre os grandes jornalistas que perfilaram nos jornais dos Fiorentino esteve João Neves Carneiro, que se dedicou a vida toda ao dom de escrever.

Nicola Fiorentino, por sua vez, dirigiu "A Cidade" até seu falecimento em 1958. O jornal ainda sobreviveu por algum tempo dirigido e administrado por seus sobrinhos e contando sempre com a ajuda de Flavio Wellichan, até ser vendido a um grupo liderado pelo padre Washington Jose Pera.

“A Tarde” interrompeu suas atividades pouco tempo depois da morte de Francisco Fiorentino em 1960. O último número circulou no dia 31 de dezembro daquele ano.

A memória de “Chico da Tarde” permaneceria para sempre guardada na memória dos são-carlenses. Os antigos leitores eram pródigos em descrever o ambiente da época e cultivar boas recordações do homem que na família, na sociedade e nos meios em que atuou fez valer a tradição, o idealismo e o espírito de luta na defesa dos interesses comunitários. Por sinal, preciosos legados da contribuição da família Fiorentino à nossa imprensa e à história de São Carlos.

(*) O autor é cronista e assessor de comunicação em São Carlos  (MTb 32605) com atuação na Imprensa da cidade desde 1980. É autor do livro “Coluna do Adu – Sabe lá o que é isso?” (2016).

Esta coluna é uma peça de opinião e não necessariamente reflete a opinião do São Carlos Agora sobre o assunto.

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