quarta, 24 de abril de 2024
Resplandecente Alma

A Necessária Consciência Negra

20 Nov 2020 - 15h51Por Anaísa Mazari
A Necessária Consciência Negra -

Escrevo este texto após uma fase de trabalho em janeiro de 2020 em que diversas pessoas negras passaram pelo meu consultório relatando experiências discriminatórias em razão da cor. Em um dia muito específico dessa fase de trabalho, após a saída de uma atendida jovem, negra e militante da causa, fechei meus olhos dentro da minha sala por alguns minutos e me imaginei nas situações de exclusão e violência por ela relatadas. Lágrimas caíram de meus olhos. E desde a escuta de seu relato, tanto dela como de outras pessoas, até aquela experiência pessoal de exercício de empatia, pude chegar perto das dores emocionais dessas pessoas e até mesmo de sua ancestralidade. A reflexão aqui presente se dá pela necessidade social de contribuir para mudanças estruturais, considerando que o racismo permeia o cotidiano e acontece de maneira naturalizada como emoutras situações sociaisde opressão. Inicio ainda o texto, pedindo a devida licença às pessoas negras, pois estou falando do assunto, consciente de que como pessoa branca, mesmo dentro do meu exercício de empatia, dificilmente alcançarei a magnitude completa das experiências de segregação que as pessoas negras vivenciam cotidianamente desde sua infância.

Primeiramente, observam-se as tentativas constantes em âmbito social de contrariar a importância de existir um dia de celebração e reflexão acerca da Consciência Negra em um calendário que permite o enaltecimento simbólico de diversos momentos históricos, personalidades e marcos evolutivos considerados importantes na sociedade. Zumbi dos Palmares, sua luta, sua importância social merecem mais que um dia de celebração; através do dia da Consciência Negra, sua importância se concretiza ainda mais para a construção de uma sociedade urgentemente mais igualitária após séculos de sua morte. A tentativa de minorar a importância da data pode ser mais um comportamento e uma informação proveniente do âmbito social que corrobora o caráter estrutural do racismo, confirmando a necessidade premente de desconstrução do fenômeno. Este dia, bem como demais ações afirmativas são extremamente necessários,trazendo para a visibilidade a necessidade daconsciência para as engrenagens de uma estrutura social que perpetra violências e continua promovendo segregação e racismo através de diferentes mecanismos, desde os mais velados até os mais explícitos. A avaliação de que o racismo não existe, a prevalência de formas de violência que acontecem em larga escala direcionadas a pessoas por sua cor, aliás, é o primeiro passo para o fortalecimento da naturalização permitida e até institucionalizada das formas veladas de exclusão que se desenvolvem para as manifestações de violência das mais cruéis. O que vemos na grande maioria das vezes são o combate e as manifestações enfáticas apenas quando atos de extrema crueldade contra negros são noticiados. Mas enquanto processo social, o racismo é diariamente alimentado e reforçado por todos os atores sociais através das fantasias de uma igualdade da qual estamos ainda muito distantes – e continuaremos distantes - se não houver essa consciência. Desde as piadas, olhares discriminatórios, exclusões cotidianas, até mesmo algumas expressões linguísticas que repetimos sem conhecimento das origens históricas – mas que se fazem presentes, engendradas em nosso inconsciente coletivo - são contributivas para perpetrarem condutas racistas e de fortalecimento de significados simbólicos que naturalizam a opressão. Expressões como “a dar com pau”, “meia tigela”, “cor do pecado”, “não sou tuas negas”, estão diretamente relacionadas ao passado de escravidão e inferiorização dos negros em seus momentos históricos mais estarrecedores. Associações pejorativas da cor negra a contextos desfavoráveis também explicitam a desigualdade, assim como expressões “inveja branca”, “alma branca”, evidenciam a superioridade simbólica das cores claras em detrimento de compreensões de que todas as cores, raças e etnias deveriam ter seu lugar social igualitário e pertencente, sem nivelamentos segregacionistas conforme acontece.

Dados do IBGE de 2019 confirmam a desigualdade racial, apontando que pretos e pardos integrantes de 56% da população, apresentam os piores indicadores de renda, escolaridade e moradia. Segundo a Atlas da Violência de 2020, a taxa de homicídios envolvendo pessoas negras subiu 11,5%, totalizando 75,9% de pessoas negras assassinadas no período de 2008 a 2018. As taxas de analfabetismo entre negros de 9,1, estão cinco pontos percentuais à frente do mesmo índice relacionado à população branca. A pandemia também atingiu de forma mais cruel a população negra, desde a prevalência de acometimento pela doença, relacionada às condições de vida, até as questões como desemprego. Dizem que contra fatos não há argumentos e daí a necessidade (urgente) da Consciência Negra, para que a história seja contada de forma verossímil, sem supressão de partes importantes ou enfeites, sem suavizações como aconteceu por muito tempo inclusive em âmbito escolar, para que a importância das raízes históricas e culturais dos afrodescendentes ganhe a dimensão de pertencimento e de valorização que lhe foi negada por longos séculos. As urnas em nível nacional nos deram uma resposta de representatividade bem importante em 2020. Em São Carlos, contudo, nenhum candidato negro foi eleito na Câmara Municipal, o dia da Consciência Negra não integra o calendário de feriados, sendo feriado em mais de 1000 municípios brasileiros e em 5 Estados e nosso município foi um dos últimos a abolirem a escravidão, conforme a história local conta. Aspectos importantes para refletirmos sobre a importância de caminhar coletivamente para uma igualdade factual que necessita sair da fantasia, do papel, do discurso e do mundo das ideias.

Hoje é aquele dia em que veremos as redes sociais repletas de defesas (necessárias) para a Consciência Negra, mas que possamos compreender a questão para muito além de interpretações rasas. Entre esses muitos posts que devem estar presentes, encontraremos aqueles que também falarão de uma Consciência Humana em detrimento da necessidade da Consciência Negra;faz-se necessário o cuidado para não cair na armadilha de afirmar que a desigualdade não existe, que é relativa, que não é real, que os privilégios não existem para as pessoas brancas.Existem, são fatos comprovados, somos formados pelo eurocentrismo, pela superioridade perpetrada da branquitude que servem à manutenção da dominação vigente.Reconheçamos e então poderemos desconstruir a desigualdade genuinamente.                        

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