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quinta, 27 de março de 2025
OSCAR 2025

“Vitória de ‘Ainda Estou Aqui’ desafia hegemonia das big techs”, afirma cineasta são-carlense

Segundo Massarolo, cinema ainda navega entre tradição e reinvenção enquanto a produção seriada contemporânea explora temas como a sociedade plataformizada e os paradoxos da inteligência artificial

11 Mar 2025 - 13h25Por Marco Rogério
O cineasta e professor do Departamento de Imagem & Som da UFSCar, João Massarolo: “O filme, imbuído da sensibilidade característica de Walter Salles, reinventa o melodrama ao mesclar secura narrativa com poesia visual, transformando o cotidiano opressivo - Crédito: arquivo pessoalO cineasta e professor do Departamento de Imagem & Som da UFSCar, João Massarolo: “O filme, imbuído da sensibilidade característica de Walter Salles, reinventa o melodrama ao mesclar secura narrativa com poesia visual, transformando o cotidiano opressivo - Crédito: arquivo pessoal

O cineasta João Carlos Massarolo, professor universitário do Departamento de Imagem e Som da UFSCar, doutor em Cinema pela USP, diretor e roteirista de vários filmes, entre os quais, “São Carlos/68” e “O Quintal dos Guerrilheiros”, está comemorando a vitória do longa “Ainda Estou Aqui”, com a conquista de Melhor Filme Internacional e coloca o filme dirigido por Valter Salles como um divisor de águas na história do cinema. Em entrevista exclusiva ao SÃO CARLOS AGORA ele destaca a proeza de Valter Sales, Fernanda Torres e toda a equipe. “A vitória de Ainda Estou Aqui ecoará como um divisor de águas, não apenas por projetar a produção independente brasileira ao lado de grandes cinematografias mundiais na cerimônia, mas por desafiar a hegemonia silenciosa das big techs no cenário audiovisual. Contudo, é crucial ressaltar que, enquanto o cinema ainda navega entre tradição e reinvenção, a produção seriada contemporânea — em plataformas como Apple TV e Netflix — tem se destacado por sua ousadia crítica ao explorar, com complexidade rara, temas como a sociedade plataformizada e os paradoxos da inteligência artificial”, explica ele. 

SÃO CARLOS AGORA – Como o senhor viu o resultado do Oscar?
JOÃO CARLOS MASSAROLO - O resultado do Oscar 2025 foi, em muitos aspectos, histórico e simbólico. Apesar da relutância inicial de parte do público em aceitar a vitória de produções independentes — especialmente diante do contraste com a pompa e os visuais exuberantes exibidos no tapete vermelho —, a premiação consolidou uma tendência irreversível que já se anunciava há tempos. As principais categorias da noite foram dominadas por obras de cinema autoral, não apenas estadunidenses, mas também de diferentes regiões do mundo, sinalizando uma transformação profunda nos rumos da indústria audiovisual.
De forma inédita, a Academia reconheceu o papel central das big techs na nova era do cinema. Essas empresas, que hoje controlam não apenas a infraestrutura técnica da produção cinematográfica global, mas também os canais de distribuição e exibição, consolidaram-se como protagonistas de um ecossistema em constante reinvenção. O curioso é que, mesmo nesse cenário, espaços alternativos surgiram. Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, é um exemplo emblemático: produzido pela Globoplay, o filme brasileiro conquistou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, destacando-se como uma exceção à hegemonia das gigantes tecnológicas.
A vitória de Salles, além de celebrar a qualidade do cinema nacional, reforça a ideia de que o futuro da sétima arte passa por modelos híbridos — onde independência criativa e plataformas disruptivas coexistem. O Brasil, nesse contexto, saiu duplamente vitorioso: não apenas pelo prêmio, mas por demonstrar que é possível resistir ao monopólio das big techs com narrativas autênticas e relevância cultural. Uma noite que certamente será lembrada como um marco de transição para o cinema do século XXI.

SCA - Por que o longa de Valter Salles ganhou? foi justo?
MASSAROLO- A vitória foi mais do que merecida. A conquista histórica do Oscar por Ainda Estou Aqui, marco inédito para o cinema brasileiro, não pode ser atribuída a um único fator. Para compreender esse feito, é fundamental analisar os desafios estruturais da indústria audiovisual contemporânea, especialmente diante do fenômeno da plataformização cultural e suas implicações na produção, distribuição e visibilidade das obras.
O filme, imbuído da sensibilidade característica de Walter Salles, reinventa o melodrama ao mesclar secura narrativa com poesia visual, transformando o cotidiano opressivo do regime militar em um mosaico de nuances humanas. Se alguns criticam justamente essa abordagem — por considerar que a leveza estética dilui a brutalidade histórica —, é preciso lembrar que a arte não existe para consenso, mas para provocar reflexões plurais.
A família, tema central na filmografia de Salles, ganha contornos ainda mais complexos aqui. Como em Abril Despedaçado (2001), sua obra-prima, e no documentário No Intenso Agora (2017), de João Moreira Salles, os laços familiares são explorados como microcosmos de conflitos sociais. Nesse contexto, a atuação de Fernanda Torres brilha: sua interpretação da mãe em desespero é uma performance trágica, rara no cinema nacional, que transcende clichês e ressoa com uma intensidade quase física.
Já o prêmio de Melhor Atriz para Mikey Madison, por Anora de Sean Baker, segue a lógica previsível da Academia: ao premiar uma produção independente estadunidense que dialoga com o cânone hollywoodiano (no caso, evocando Uma Linda Mulher), a escolha parece mais uma concessão ao mainstream do que um reconhecimento de ousadia. Enquanto Anora se apoia em estereótipos romantizados, Ainda Estou Aqui desafia narrativas fáceis, o que torna sua vitória ainda mais simbólica.
Por fim, é irônico discutir o termo "cinema independente" em um cenário onde plataformas como YouTube, Netflix ou Globoplay redefinem o que é autonomia criativa. Se, por um lado, essas ferramentas democratizam o acesso, por outro, borram as fronteiras entre o indie e o corporativo. Walter Salles, ao vencer com uma produção da Globoplay, mostra que é possível navegar esse paradoxo: criar arte relevante sem abrir mão de identidade — um legado que, mais que um Oscar, é um marco para o cinema brasileiro.

SCA - Esta vitória é um marco na história do cinema brasileiro?
MASSAROLO - Sem dúvida. A vitória de Ainda Estou Aqui ecoará como um divisor de águas, não apenas por projetar a produção independente brasileira ao lado de grandes cinematografias mundiais na cerimônia, mas por desafiar a hegemonia silenciosa das big techs no cenário audiovisual. Contudo, é crucial ressaltar que, enquanto o cinema ainda navega entre tradição e reinvenção, a produção seriada contemporânea — em plataformas como Apple TV e Netflix — tem se destacado por sua ousadia crítica ao explorar, com complexidade rara, temas como a sociedade plataformizada e os paradoxos da inteligência artificial.
Séries como Ruptura (2024-), que desmonta a ilusão de liberdade em ambientes digitais controlados por corporações, e Zero Day, que expõe o caos político alimentado por algoritmos de desinformação, mergulham em reflexões ácidas e urgentes, algo que o cinema mainstream muitas vezes aborda com timidez, preso a fórmulas seguras. Enquanto isso, o mercado audiovisual vive uma encruzilhada: de um lado, obras como as da Marvel, com estéticas hiper-realistas e narrativas pasteurizadas, refletem um cinema moldado por plataformas algorítmicas — histórias pré-digeridas, emoções calculadas, personagens descartáveis. Do outro, surge a busca por um cinema que resgate as "paisagens locais", conectado a identidades e realidades específicas, mas que enfrenta resistência num ecossistema globalizado e padronizado.
Nesse contexto, o triunfo de Ainda Estou Aqui ganha camadas simbólicas: mais que um prêmio, é um manifesto pela diversidade narrativa em um cenário dominado por gigantes tecnológicos. O desafio, agora, é evitar que esse marco seja apenas um caso isolado, e sim o estopim para um movimento que valorize vozes autênticas — antes que as telas sejam definitivamente tomadas por universos franchisados e algoritmicamente previsíveis, onde a alma do cinema se dissolve em efeitos especiais e roteiros sem raízes.

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