terça, 16 de abril de 2024
Memória São-carlense

Um mestre chamado Ary Pinto das Neves

18 Mai 2018 - 05h59Por (*) Cirilo Braga
Um mestre chamado Ary Pinto das Neves - Crédito: Arquivo Histórico Crédito: Arquivo Histórico

A turma do primeiro colegial do Álvaro Guião em 1979 logo descobriu que o professor de História naquele ano não seria um professor qualquer. No primeiro dia de aula, entrou na classe um senhor sisudo, bonachão, usando óculos tipo anos 60, de aros grossos, com blazer cinza e calvície que lhe emprestavam um ar de vigário de paróquia. Sem dizer palavra, a primeira coisa que fez foi pegar um giz e escrever na lousa. “Disciplina: História. Professor: Ary Pinto das Neves”.

Virou-se para os alunos com olhar severo e ordenou com voz grave: “Não riem”. Ato contínuo, contou uma piadinha sem graça que, evidentemente, fez a classe passar dez minutos gargalhando, para emendar em seguida: “Sou mesmo um ótimo contador de piadas!”

Vindos de outras escolas - eu e meus amigos mais chegados, da EE Paulino Carlos -, naquele instante não sabíamos que aquele senhor tinha, ele próprio, muitas histórias além das que estavam nos livros.

O seu jeito de ensinar garantia a interação e nos fazia gostar à beça de aprender, de descobrir, de perceber que havia nexo nos acontecimentos sobre os quais estudávamos, não mais tendo que meramente decorar uma batelada de datas e causas de conflitos históricos. Ele entremeava as palestras com perguntas incidentais sobre o tema. Assim despertava na turma a curiosidade pelos eventos que estavam na “ordem do dia”. Com minguados 15 anos, a gente não se dava conta de que o professor Ary, então sexagenário, já tinha sido presidente da Câmara de Vereadores, fundado a Escola Militão de Lima e reconhecido com o título de “Cidadão Honorário”.

Vale um parêntesis para falar de sua prodigiosa biografia. Ela incluía o convite de D. Ruy Serra para lecionar História no Colégio Diocesano onde também participou da administração, e o exercício do magistério nos Institutos de Educação de São Carlos e Descalvado.  A vereança pela UDN, de 1955 a 1963.A denominação do prédio da Câmara de “Euclides da Cunha” com lei de sua autoria, como também a criação do Arquivo Público Municipal.  Foi eleito “Professor do Ano”, atuou como Diretor do Departamento Municipal de Educação e fundou ao lado de Marivaldo Carlos Degan, o Clube Atlético Paulistinha.

Alguém na classe saberia dizer por que as especiarias eram tão importantes e por que raios os ibéricos empreendiam viagens complicadíssimas para busca-las nas Índias? Por que tanto esforço em busca de simples temperos?

O aluno levantou a mão e tascou: “Ora, professor, fácil. Era porque naquele tempo ainda não tinha geladeira Clímax”. Risos na classe. “Muito bem, ponto pra você”.

Quem prestava atenção nas aulas do professor Ary, dava show nas provas. E todo mundo ficava esperto, porque a prova tinha no máximo duas perguntas, para que fossem feitas dissertações sobre os temas como “A aventura dos descobrimentos”. Com uma extensa “redação” tirei um dez e entrei para a “Classe Especial” da locomotiva imaginária criada pelo professor, na hora de anunciar as notas.

Começava pelo pingente, passava pela terceira classe, segunda classe e finalmente chegava à especial, em que os alunos que a alcançavam eram saudados com a expressão: “O Senhor é uma figura impoluta e de um caráter sem jaça”.

Impoluta? Jaça? Logo descobrimos que aquilo era um elogio de primeira grandeza. Um incentivo para alcançar a melhor nota na prova do professor Ary, que rigorosamente a entregava na aula seguinte. E, obviamente, mexia com os brios da rapaziada dos últimos vagões.

A fácil linguagem utilizada em aula nos fazia íntimos dos navegadores portugueses. De repente eles não eram vultos da história, mas gente de carne osso que desafiou os perigos e o abismo do mar para ampliar os limites do mundo. O professor fazia da aula um passeio pela História, descrevendo aspectos pitorescos ou curiosos sobre diversas situações e apresentando interessantes visões do cotidiano.

A História, afinal, sempre segue seu curso, entre tempestades, doenças, fome, revoltas e guerras. E a aventura de aprender, também. Com a mesma verve do mestre, o escritor Ary Pinto das Neves brindou a cidade com livros que têm presença obrigatória nas bibliotecas das escolas locais: “O Jardim Público de São Carlos do Pinhal” (1983), “São Carlos na Esteira do Tempo”(1984) e “São Carlos- da escolinha de primeiras letras às universidades de prestígio internacional”(1991).

Num certo dia, informado de que um aluno recém-eleito para a presidência do Centro Cívico, ameaçava renunciar ao posto, “seu” Ary chamou-o à sala dos professores e advertiu: “Pense bem. Por uma atitude assim foi que o Brasil mergulhou na ditadura, uma noite na História”.

O aluno me contou anos depois essa passagem, dando a noção de que o professor transportava mesmo para a vida o que ele falava na sala de aula. Costumava dizer que era importante conhecer o passado para construir a grandeza do presente e preparar o futuro.

Ali, numa escola pública onde o víamos em ação num tempo em que o ensino público começava a despencar ladeira abaixo, éramos privilegiados sem saber. O mestre ousava e mesmo nos momentos de irritação, apelava para o bom humor. Elogiava a própria voz “maviosa”, ao lançar um olhar irônico sobre quem insistia em papear, atrapalhando a aula: “Vá falar lá longe!”. Ninguém ia, claro.

Quando o professor faleceu em São Carlos em junho de 2004, aos 85 anos, eu me recordei disso tudo e registrei numa crônica de jornal. Como os descobridores das lições daquele primeiro colegial, seu barco partiu para a grande viagem. E como todo mestre de verdade, não deixa apenas lembranças, mas um legado de juvenil entusiasmo, de pertinácia (palavra que gostava de usar) e um recado numa garrafa lançada ao mar: “O senhor é uma figura impoluta e de um caráter sem jaça”.

(*) O autor é cronista e assessor de comunicação em São Carlos  (MTb 32605) com atuação na Imprensa da cidade desde 1980. É autor do livro “Coluna do Adu – Sabe lá o que é isso?” (2016).

Esta coluna é uma peça de opinião e não necessariamente reflete a opinião do São Carlos Agora sobre o assunto.

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