sexta, 19 de abril de 2024
Artigo Antonio Fais

O rio, o jacaré e a floresta

23 Abr 2018 - 13h06Por (*) Antonio Fais
O rio, o jacaré e a floresta - Crédito: Divulgação Crédito: Divulgação

Não sei se vocês já tiveram esta curiosidade, mas um dia resolvi perguntar à vovó como ela conheceu meu avô, ou como começaram namorar.

(Meu avô era muito culto, filósofo, escritor e risonho; vovó era quem resolvia os assuntos práticos da casa – era professora de matemática).

Essas conversas só se davam nos raros momentos que ficávamos a sós, pois além do barulho da família italiana, vovó tinha um certo pudor quando tocávamos nesse tema. Mas começou a contar:

Ele estudava na mesma classe que eu, mas nunca havíamos conversado. Era quieto, sentava-se no fundo da sala, na última carteira da fileira da porta; eu, na primeira carteira na fileira da janela – uma hipotenusa, brincaríamos mais tarde.

Certo dia, no intervalo, eu e algumas amigas queríamos fumar no banheiro, mas não tínhamos fósforos. Eu o vi sentado sozinho e fui lá pedir. Ele me lembrou que era proibido. Eu sorri e dei de ombros, e ele me deu a caixa de fósforos.

A partir desse dia, começamos a conversar todos os dias um pouco. Ele se mudou para a última carteira da fileira das janelas – um cateto. Mas ele ainda era distante, um pouco tímido.

Um dia, ele ouviu que eu e minhas amigas iríamos a um baile e, no sábado, ele apareceu por lá. Ele me pediu para dançar, mas dançava muito mal – e isso acentuou sua timidez.

Nos dias que se passaram, ele voltou a ficar quieto e solitário.

Até que um dia, D. Yvete, professora de português, resolveu que a prova seria uma redação diferente: “Um pingo d’água na vidraça”! Todos saíram para o intervalo, mas ele ficou lá, sentado na última carteira, agora do lado das janelas, desolado. Do meu ponto de vista, de perto da porta, sentia sua angústia e fui até lá ter com ele: “Como fazer uma redação sobre isso?”, ele perguntou como se fosse uma tábua a boiar na imensidão do mar em um dia de chuva. “Quer que eu faça uma para você?”, sugeri – eu também não tinha a menor ideia do que escrever.

Ali, ao seu lado, olhei as carteiras, vi onde eu me sentava, e fiquei imaginando como seria olhar a gota d’água nas vidraças de diversos pontos de vista, como seria olhar as pessoas e o mundo de lugares diferentes, pensei nas deformações e conformações. Em menos de 20 minutos, estava pronta a sua redação.

À noite, em casa, tentava fazer a minha, mas não me vinha outra ideia como aquela, era única, inspirada pela falta de imaginação dele.

Ele tirou dez, com louvor; eu, seis. Via nos seus olhos a vontade de trocar as notas, mas o que está feito, está feito, pensamos nós na cumplicidade dos olhares silenciosos.

Mas ele ainda era tímido e não deixava transparecer seus sentimentos, medos e alegrias.

E lá estava ele, novamente sentado sozinho no pátio. Eu me aproximei e ele pegou em minha mão e começou a riscar a minha palma com seu dedo e disse: “Imagine que há aqui um rio e uma floresta na outra margem; você tem que atravessá-lo para ir à floresta e este é o único lugar raso para você passar, mas entre você e a floresta há um jacaré faminto. Como você faz para atravessar?”.

Eu pensei por mais de um minuto, e como não sabia a resposta, disse: “Não sei. Como?”

E ele, com um sorriso fugaz de canto de boca, disse: “Também não sei, mas segurar a sua mão é tão gostoso!”.

Antonio Fais, graduado em Ciências da Computação pela Universidade Federal de São Carlos. Na década de 1980, criou e implantou os primeiros cursos de Informática do SENAC-SP. Escritor, graduou-se também em Filosofia, especializando-se em linguagem e aprendizagem. Realiza formações para professores e empresas em comunicação, linguagem, literatura e escrita criativa.

Esta coluna é uma peça de opinião e não necessariamente reflete a opinião do São Carlos Agora sobre o assunto.

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