quarta, 24 de abril de 2024
Memória São-carlense

Heroicos soldados de São Carlos na II Guerra Mundial

20 Abr 2018 - 06h42Por (*) Cirilo Braga
Heroicos soldados de São Carlos na II Guerra Mundial - Crédito: Foto: Tadeu Rantin, Arquivo Histórico e São Carlos Agora Crédito: Foto: Tadeu Rantin, Arquivo Histórico e São Carlos Agora

São Carlos teve e tem muitos motivos para se orgulhar dos soldados que enviou às frentes de combate na II Guerra Mundial. Alberto Crestana, Eduardo Bragatto, Francisco Rantin e Gerson José Micheloni foram os são-carlenses integrados à Força Expedicionária Brasileira, a FEB, nas batalhas em Monte Castelo, Montesi e na planície do rio Pó, na Itália. A intensidade de tudo que viram e viveram, seguiu com eles ao longo da existência de cada um. Falecidos, deixaram entre nós um testemunho de valentia, coragem e abnegação. Um legado precioso.

Numa das poucas vezes em que estiveram reunidos publicamente, em 25 de junho de 1995, a Câmara Municipal prestou-lhes rara homenagem dedicando medalhas alusivas ao cinquentenário do término do conflito com a derrota do nazifascismo.

Cerca de dez anos atrás, era para mim uma alegria conversar no café da esquina com o velho soldado do front, Francisco Rantin, que possuía duas características que aprecio: tinha grandes histórias reais para contar e gostava desta cidade, sentimento que fazia questão de irradiar ao interlocutor. Dava impressão de que aquele senhor alto, magro, de olhos claros e sempre muito falante, nunca saiu ali das redondezas da Santa Casa e da praça da 15, região onde sua família se estabeleceu há muito tempo.

"Seu" Francisco estava sempre muito atento aos acontecimentos, como se ainda incorporasse o observador da FEB. Uma rápida prosa com ele representava fazer uma viagem transportado por seus relatos, ora sobre a cidade, ora sobre os fatos históricos que acompanhou e viveu.

Desde a casa onde nasceu e passou a infância, na rua Visconde de Inhaúma, esquina com Avenida Doutor Carlos Botelho, a sua memória passeava pelos cenários que os olhos registraram e o coração guardou. Muitas passagens tinham semelhança com o que viveram contemporâneos seus, também filhos de imigrantes que aqui chegaram no final do século 19. O pai, vindo da Itália, destacou-se como alfaiate. A mãe era portuguesa.

Desde cedo ensinaram-lhe o valor do trabalho, a que Francisco adicionou o gosto pela inovação. Era frequente em suas narrativas o orgulho de ter construído a primeira torre de rádio da cidade. Fazia o Tiro de Guerra no ano de 1941, trabalhando na oficina dos irmãos Gasparotti, quando prestou serviços a Gisto Rossi, pioneiro do rádio local. O começo no batente fora ainda antes, logo que terminou o curso primário, como era comum aos filhos de imigrantes, começou a trabalhar numa fábrica de tecidos.

Em tempos literalmente de guerra, a convocação para o Exército colheu de surpresa o moço que começaria a aprender inglês para tentar voos mais altos, já empregado na Goodyear, na Capital. Emocionou-se ao me contar que o sonho de ir aos EUA para trabalhar, se converteu no pesadelo de ir para a Itália guerrear. Partiria no instante em que o pai, muito doente, teve de amputar uma perna.

Perguntei-lhe sobre as memórias do teatro de operações. De dois dias em particular, falou como se vivenciasse novamente: o da partida para Nápoles em de julho de 1944 e o do regresso, 15 de agosto do ano seguinte. Viu amigos tombarem, minas explodirem, se espantou com a divisão de negros e brancos nas tropas norte-americanas nas cercanias de Florença e até Susa,próximo à divisa da França.

Comentou que ficava assombrado pelo desconhecimento que muita gente tem no Brasil sobre o que se passou na II Guerra Mundial. Alguns confundem com o levante paulista de 1932. “Em 32 eu era apenas escoteiro”, contava. Na lendária Força Expedicionária Brasileira, formou entre os 25.250 brasileiros que Getúlio Vargas enviou à Itália. Era o Soldado 502 da primeira bateria do 2o.grupo de artilharia, atuando no setor de observação avançada e comunicação.

Guardava muitas fotografias da época. Fotos, livros, roteiros, registros. Recebeu dois livros da Itália sobre a presença dos brasileiros e ficou muito tocado quando visitou aquele país e reviu o cenário dos combates. “As lembranças são terríveis”.

O grupamento de soldados que integrava só conseguiu retornar ao Brasil dois meses após o término da Guerra. Lembrava que Getúlio Vargas havia dito que enviava “a fina flor da mocidade brasileira”, a quem garantia que “nada vos faltará, nem na guerra e nem na paz”, embora não tenha sido assim.

Rantin trabalhou na Goodyear até 1949 quando prestou concurso público e se tornou chefe regional do IBGE. Muita gente o conheceu como o “seu Rantin do IBGE” por conta dos 27 anos de serviço no instituto, cuja regional conseguiu transferir de Araraquara para cá, coisa rara.

Quem o via desfilar como ex-combatente da FEB nos desfiles comemorativos ao lado do colega expedicionário Eduardo Bragatto, não sabia que Rantin precisou incorporar os ensinamentos de soldado pela vida afora. Para ele, o verso “a vida é um combate”, nunca foi apenas poesia. Sempre que bateu à porta da burocracia estatal para reivindicar um direito, não teve boa receptividade. A última foi um pedido para fazer uma cirurgia pelo SUS. O dia-a-dia pareceu reservar tantas minas e ardis quanto as tropas de Hitler no caminho dos aliados. Mas, como disse Harry Truman,o presidente norte-americano que sucedeu Franklin Roosevelt, “pessoas sensatas sempre mantêm a fé no triunfo da justiça”.

Rantin costumava demonstrar perplexidade com a pouca referência aos expedicionários que se vê em São Carlos. As homenagens se resumiam ao nome de um pequeno canteiro na confluência da Avenida Marginal com a rua Aquidaban.

É lugar comum reclamar da falta de memória cívica neste país, por isso não se pense que o “soldado Rantin” viveu olhando para o passado. A conversa com ele se tornava ainda mais agradável quando, a bordo de um par de tênis, ele falava de São Carlos. “Sempre amei minha cidade e sempre propaguei esse amor”. Poderia acrescentar que teve ainda o bom costume de captar as lições que a vida lhe trouxe, principalmente as de honestidade e humildade.

“O mundo precisa mais de paciência e menos de orgulho”, sentenciava ao citar a humildade que viu em Pedro Morganti, que conheceu nos anos 1960, “alguém que não se deixou levar pela riqueza, pelo poder”. Francisco Rantin tinha sabedoria e suas histórias eram um chacoalhar na descrença, um sacudir da consciência de quem imaginava ser mais fácil uma cobra fumar do que encontrarmos pessoas como ele numa manhã qualquer.

São Carlos se despediu dele em definitivo na manhã do dia 24 de fevereiro de 2016, quando faleceu aos 93 anos. O último remanescente dos expedicionários locais, Eduardo Bragatto, partiu no dia 27 de outubro de 2017, aos 94 anos, encerrando sua participação, até então infalível, nos desfiles cívicos na Avenida São Carlos e em eventos do Tiro de Guerra que costumava prestigiar em datas comemorativas.

Os soldados brasileiros são tidos como heróis em cidades italianas, que todos os anos comemoram a libertação. Em Montese,uma praça foi batizada com o nome de "Piazza Brasile", o Museu histórico conta uma parte da história brasileira durante a II Guerra Mundial e crianças italianas cantam em português a Canção do Expedicionário, o Hino da FEB ("Por mais terras que eu percorra/Não permita Deus que eu morra/Sem que eu volte para lá"). Nossos soldados mostraram ao mundo que o nosso país era mais que samba e futebol. O Brasil representado por eles foi capaz de transformar angústia em coragem, sofrimento em vitória.

Os “pracinhas” somente não venceram a indiferença dos compatriotas brasileiros a seu heroísmo, ainda que na partida das tropas no dia 2 de julho de 1944, diante do navio-transporte General Mann Getúlio Vargas tenha se despedido dos expedicionários com as seguintes palavras: “Soldados da Força Expedicionária. O chefe do governo veio trazer-vos uma palavra de despedida, em nome de toda a nação. O destino vos escolheu para essa missão histórica de fazer tremular nos campos de luta o pavilhão auriverde. É com emoção que aqui vos deixo os meus votos de pleno êxito. Não é um adeus, mas um ‘até breve’, quando ouvireis a palavra da pátria agradecida”.

 

(*) O autor é cronista e assessor de comunicação em São Carlos  (MTb 32605) com atuação na Imprensa da cidade desde 1980. É autor do livro “Coluna do Adu – Sabe lá o que é isso?” (2016).

Esta coluna é uma peça de opinião e não necessariamente reflete a opinião do São Carlos Agora sobre o assunto.

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