quinta, 18 de abril de 2024
Memória São-carlense

Era um garoto chamado Lauriberto Reyes

04 Mai 2018 - 04h53Por (*) Cirilo Braga
Era um garoto chamado Lauriberto Reyes - Crédito: SCA e Internet Crédito: SCA e Internet

Numa de suas vindas a São Carlos no final dos anos 1960 no período em que o governo militar recrudescia a repressão a seus opositores, o jovem estudante são-carlense Lauriberto Reyes encontrou-se com amigos no centro da cidade e anunciou em alto e bom som: “No próximo dia 4 de novembro vou fazer uma homenagem a São Carlos. Assistam na TV”. Era outubro de 1969 e então estudando na Capital, ele participava dos movimentos de resistência ao regime instaurado cinco anos antes. Usava o codinome Vinícius, mas entre amigos locais continuava a ser o Lauri. O sujeito boa praça que tocava violão e fazia serenatas, que cursou o primário no Instituto Alvaro Guião e o ginásio no Colégio Diocesano, deu duro nos estudos para ingressar na Escola Politécnica e foi morar no CRUSP (Conjunto Residencial da USP) onde rapidamente virou diretor cultural.

Tinha deixado para trás os tempos do colaborador assíduo do jornal “O Diocesano” com seus artigos indignados com a injustiça social e já navegava nas águas turbulentas da utopia de tantos jovens daqueles anos 1960. A organização do célebre XXX Congresso da UNE em Ibiúna já estava em seu currículo de combates nas fileiras da organização Aliança Libertadora Nacional (ALN) e depois do Movimento de Libertação Popular (Molipo).

Os amigos de São Carlos certamente se arrepiavam à simples menção destas siglas e não entenderam no primeiro momento o recado enigmático dado no interior de um bar da Avenida – a explicação só viria no feriado de aniversário de sua terra natal, quando os noticiários da TV trouxeram o relato do sequestro de um Boeing da Varig que partiu de Buenos Aires para Santiago e foi interceptado por um grupo que incluía nove brasileiros que viviam em Montevidéu fugiam para Havana – entre eles Lauri.

Em Cuba, faria outros amigos que talvez o definissem melhor que os conterrâneos de São Carlos, porque lá – como me disse um deles com quem tive a oportunidade de conversar tempos atrás – Lauri incorporava o personagem da canção que dizia: “Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones/Girava o mundo sempre a cantar as coisas lindas da América/Não era belo, mas mesmo assim havia mil garotas a fim”.

Tinha alma de estudante e estava sintonizado com o pensamento dos estudantes diante de um cenário em que liberdade era muito mais que uma palavra de ordem, se convertia mesmo num condição para existir. Talvez fosse essa a centelha que transformou o menino pacato no guerrilheiro que optou pela clandestinidade, movendo-se entre codinomes com os quais escapava do cerco militar e ia ao encontro de si mesmo.

As letras de suas canções explicam algo sobre aquele instante vivenciado pelo jovem de vinte e poucos anos (ele nascera em 1945). Em “Modinha”: “Mesmo a saudade não encontra mais abrigo/o que traz é tão antigo quanto um desejo de paz/Dia amor/mostra um caminho a tomar/que a vida tem valor/quando é estrada e não lugar/Que o mundo não existe só pra dois/Escuta a voz é todo um povo a chamar/eu vou partir/ Se o teu caminho é igual vem junto a mim/passou o tempo de esperar/se vai ficar lhe deixo mais que essa modinha/deixo o guia, o norte, a linha pro teu dia encontrar”. Em “Torrão”: A minha terra tem areia branca/ bola de meia em campo verdinho/tem molecada correndo/tem moça sorrindo/tem sol/aquela estrela que eu vejo agora/se me distraio é a mesma de outrora/olho o casal de namorados/um dizendo, outro calado ouvindo feliz, quem sabe, os mesmos projetos que eu fiz/ pras moças que eu quis/ A minha terra tem um povo triste/não fosse embora talvez nunca visse/O que se esconde no dia (tem Zé e Maria)/Sem sol/E hoje que eu volto por outras estradas/Já não me importam velhas namoradas/Vim procurar outra gente/mudar o presente/Eu vim desta vez, companheiro/juntar o que eu tenho de novo/Nas lutas do povo”.

Aqueles amigos do bar que o viram pela última vez no velório de seu pai, escoltado por um forte aparato militar, não conheciam os versos de suas canções; apenas passariam nos anos seguintes a ouvir como lendas as histórias de suas batalhas, até que se lançasse um pouco de luz sobre aquele tempo.

No dia 27 de fevereiro de 1972 os noticiários da TV informaram sobre sua morte. No dia seguinte, todos os jornais publicaram o mesmo texto sobre o fato. Lauri tombou fuzilado em São Paulo por oficiais do DOI-CODI numa ação em que um colega dele também foi morto. Um amigo são-carlense - que estava no bar em 1969 – notou que o corpo de Lauri crivado de balas tinha as pontas dos dedos escurecidas.

No final da missa de corpo presente ouviu-se o hino religioso que dizia: “Prova de amor maior não há/que doar a vida pelo irmão”.

Faltava ainda muito tempo para que o estudante que mergulhou na utopia até as últimas consequências se tornasse nome de praça na cidade que “homenageou” num terrível e distante dezembro.

(*) O autor é cronista e assessor de comunicação em São Carlos (MTb 32605) com atuação na Imprensa da cidade desde 1980. É autor do livro “Coluna do Adu – Sabe lá o que é isso?” (2016).

Esta coluna é uma peça de opinião e não necessariamente reflete a opinião do São Carlos Agora sobre o assunto.

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