Paulão era um gozador. Aprontava com tudo e com todos sem distinção desde a mais tenra infância. Não perdoava nada nem ninguém. A irmã mais nova era uma de suas vítimas: uma vez pôs groselha nos pulsos e saiu gritando que queria morrer. Resultado: já na faculdade de medicina, a moça desmaiava cada vez que via sangue. Quando ele descobriu que gatos engoliam carne sem mastigar, resolveu fazer um teste: prendeu uns toletes de carne com anzol por dentro em uma linha de pesca a uma árvore. Divertia-se vendo os gatos loucos.
Sua vítima preferida, no entanto, sempre foi o Cardozinho. Dentre tantas, inventou que, em um troca-troca, havia comido o Cardozinho e corrido na sua vez, o que deu ao garoto a fama de veado e, pra completar, começou a chamá-lo de Dodô – apelido que pegou logo.
Cardozinho (ou Dodô, como preferirem) jurou vingança, mas sempre disse que esta viria com o tempo e, quando viesse, acumulada e de forma definitiva. Mas parecia mais um desabafo que uma ameaça.
Seguiram assim a vida e por ironia do destino, ou não, sempre estudando juntos, até na faculdade, ainda com a mesma turma que se reunia para um jantar todas as terças. Como nenhum dos dois havia se casado, todos brincavam que tinham um caso.
Paulão era gordo, esculachado, barbudo e o que mais falava e aparecia na turma. Quando pequeno ostentava os títulos de campeão de escarradas e peidos; adulto, era o que mais conseguia cantar o Hino Nacional arrotando. Diziam que tinha uma vez ultrapassado os “raios fúlgidos”!
A vingança de Dodô começou em uma terça.
Paulão, que sempre morara em apartamentos, nunca tivera o prazer de ser acordado pela crentalha que vende revistas aos domingos cedo, comprou uma casa bonita em um bairro chique da cidade e logo no primeiro final de semana já queriam convertê-lo.
No jantar da terça, ele descrevia a cena: eram duas mulheres de saia, saltos e cabelos presos. “Posso falar com o senhor?”, disse a mais alta; “De que se trata?”, perguntei; “Quem nos mandou aqui falar com o senhor foi Deus”. Aí inventei a maior história. Eu estava de cuecas e camiseta, descalço e com a maior ressaca. Parecia um bandido. Fui até o portão e comecei: “Puxa! O Senhor atendeu as minhas preces. Já fiz de tudo de ruim nesta vida: estuprei, matei, torturei. Mas, a mando d’Ele, também resolvi limpar o mundo de gente má e fiquei trabalhando como jagunço. Ontem, antes de dormir, eu Lhe pedi que mandasse alguém para ouvir a minha história e me dar conselhos. Por favor, entrem e vamos conversar...”, disse abrindo a porta. As duas deram no pé rapidinho – contou rindo. E olha que a menor era bem gostosinha.
No domingo seguinte, uma moça sozinha, de saia e cabelos presos, bate à porta do Paulão e diz: “Posso falar com o senhor?”. Paulão contou a mesma história e pediu pra ela entrar. E ela aceitou! Paulão, querendo impressionar a moça, sempre de olho em suas pernas e decote, conta de novo a história, agora com detalhes das mortes e tudo mais. Como ela se mostra impassível, parte pra cima dela aos beijos e ela corresponde. Em poucos minutos estão fazendo amor sem parar, uma, duas, três vezes, até que, extenuado, Paulão cai na cama e fica. Quando acorda, a mulher não está mais lá, apenas um bilhete: “Você não me deu tempo de contar, mas antes de entrar para Igreja, fui da vida. Minha missão é parecida com a sua. Minhas colegas que estiveram aí na semana passada e me contaram de seu caso. Então resolvi ajudá-lo a se redimir de seus pecados transmitindo o HIV que peguei na vida. Descanse em paz”.
Paulão gelou. A primeira coisa que fez foi ligar para o Dodô, que rindo por dentro, atendeu prontamente. Ainda fazendo cara de sério, falou para ele não se desesperar: “Vamos fazer os exames. Muitas vezes o homem não pega”.
Já na segunda, foi com o amigo fazer os exames. No jantar da terça justificou a ausência de Paulão. Ia visitá-lo todos os dias e divertia-se com sua vingança. Na sexta, foi buscar os exames, viu que dera negativo, mas foi ao computador e fez outro igualzinho, positivo. Deixaria o Paulão sofrer sozinho no final de semana e na terça à noite anunciaria a todos sua vingança.
Mas aí veio a surpresa: o Paulão morreu. Não se sabe se foi do coração, de desgosto ou exatamente do quê. Mas morreu.
O Velório se dava na terça à noite. E todos comentavam as proezas do Paulão: do concurso de escarros, do hino arrotado e tudo mais. E riam. Riam muito. Menos o Cardozinho, que chorava copiosamente ao lado do caixão. Queriam brincar que era a paixão da perda, mas respeitavam o sentimento do amigo. Cardozinho ainda falava que podia ser uma brincadeira do amigo: “ele vai levantar daí e dizer que foi mais uma piada”.
Foi quando, no velório lotado, pouco antes da hora final, entrou um homem de terno e anunciou solene:
- O finado deixou um testamento e pediu-me que fosse lido pouco antes de seu enterro.
Todos, ainda surpresos, calaram-se para a leitura do documento:
“Eu, Paulo de Almeida Souza Soares, Paulão, deixo todos os meus bens, móveis e imóveis, para o senhor Edilberto Cardozo, o Dodô. Imponho apenas uma condição para tal: Dodô, em respeito à nossa relação de anos, nunca mais tenha relações com outro homem, para que eu seja, como sempre fui, o único homem de sua vida. Ah! Com mulheres daqui pra frente pode, viu Dodô?”.
Todos se entreolhavam sem saber o que dizer. A gargalhada foi geral dos amigos: “este é o Paulão!”.
- Até depois de morto o filho da puta me fode – murmurou Dodô.
E quando o advogado perguntou se concordava com as condições, entre choro e risos com a capacidade do Paulão, disse um lacônico sim.
(*) O autor é, graduado em Ciências da Computação pela Universidade Federal de São Carlos. Na década de 1980, criou e implantou os primeiros cursos de Informática do SENAC-SP. Escritor, graduou-se também em Filosofia, especializando-se em linguagem e aprendizagem. Realiza formações para professores e empresas em comunicação, linguagem, literatura e escrita criativa.
Esta coluna é uma peça de opinião e não necessariamente reflete a opinião do São Carlos Agora sobre o assunto.