sexta, 19 de abril de 2024
Memória São-carlense

A “Sessão Maldita” e o legado cultural de José Sidney Leandro

17 Ago 2018 - 07h00Por (*) Cirilo Braga
A “Sessão Maldita” e o legado cultural de José Sidney Leandro - Crédito: Arquivo Histórico Crédito: Arquivo Histórico

Um dos eventos emblemáticos da cultura são-carlense nos anos 1970 está completando 45 anos neste dia 17 de agosto.  Fruto do idealismo e da ousadia de um agitador cultural autêntico, em 1973 estreou no Cine São Carlos a “Sessão Maldita”, sessão especial de cinema voltada à exibição de filmes de arte e de grande importância na história cinematográfica, uma iniciativa do artista plástico e professor José Sidney Leandro (1935-1995), então presidente da Comissão de Cinema do Conselho Municipal de Cultura comandado por Laines Paulillo.

O filme de estreia foi “Homem e Mulher até Certo Ponto”, de Michael Sarne, comédia americana de 1970, baseada no romance de 1968 de Gore Vidal com o mesmo nome e com Raquel Welch no papel principal. Em setembro daquele ano, Leandro iria além: conseguiu concretizar em São Carloso 1º. Festival Internacional de Cinema de Curta metragem, utilizando filmes fornecidos pelos consulados de diversos países e pela Embrafilme. De repente, filmes da Alemanha Ocidental, Bélgica, Canadá, Coreia do Sul, Estados Unidos, França, Japão, Holanda, Polônia e Brasil puderam ser vistos em São Carlos.

O ambiente universitário da cidade, então reforçado com a implantação da Universidade Federal, certamente estimulou Leandro a lançar a ideia inovadora, um facho de luz em tempos sombrios, algo que só podia partir de alguém que tomara para si o refrão de Vandré: “Quem sabe faz a hora não espera acontecer”. O artista não tinha apenas grandes ideias, mas sabia como colocá-las em prática - algo valioso quando se sabe que lidar com a cultura neste país significa tirar leite de pedra, remar contra a maré.

FALANDO DE CINEMA

Como José Sidney Leandro relataria vinte anos mais tarde, logo que professora Lãines Paulillo, então presidente do Conselho Municipal de Cultura, o convidou para presidir a Comissão de Cinema, sua primeira ação foi colocar junto aos painéis de cartazes de filmes das casas exibidoras um comentário crítico sobre as fitas ali exibidas. Seguiu-se a publicação de um folhetim intitulado “Falando de Cinema”, com comentários curtos sobre filmes programados pelos cinemas da cidade. Era o embrião do movimento que estava por iniciar.

O folheto teve uma única edição e a partir dele pensou-se em realizar um festival anual internacional de filmes de curta metragem e, tal qual fazia o Cine Marajá de São Paulo, programar filmes que normalmente não seriam exibidos nos cinemas de São Carlos. A apresentação desses filmes seria feita em sessões especiais denominadas "sessões malditas".

Nascia a promoção que marcou época e teria sua primeira edição em agosto no extinto Cine São Carlos, na Praça Coronel Salles (o prédio foi demolido em 1977).

“Homem e Mulher até certo ponto” deu a largada e no mês seguinte aconteceu o 1º Festival Internacional de Cinema de Curta metragem, que se repetiu por três anos. Como está relatado no livro “São Carlos no escurinho do Cinema”, de Marco Antonio Leite Brandão, que tive a honra de prefaciar, nos primeiros anos foram exibidos na sessão maldita seis filmes em 1974 e nove em 1975 e 76.

Os filmes eram destinados à população em geral, mas o grosso da plateia que superlotava a sala era formado por estudantes. Mais tarde, essa segmentação se consolidou quando folhetos de críticas dos filmes eram produzidos na Escola de Engenharia e na UFSCar.

AGITAÇÃO NA PLATEIA

Assobios, gritos, um alarido geral tomava conta da sala nas primeiras exibições da “maldita”. A pouca familiaridade com a temática naqueles anos de regime militar contribuíam para o fato. O próprio professor Leandro reconhecia que a conduta do público “era estimulada pela imagem que a sessão maldita teve – de apresentar filmes pornográficos ou, pelo menos, muito liberais – algo talvez relacionado com a natureza dos primeiros filmes exibidos”. No primeiro deles, “Homem e mulher até certo ponto”, o transexualismo era colocado como símbolo da política norte-americana. O segundo – “Ato Final”, de Jersy Skilimovsk – exibia cena de nu frontal o que, na época, não era comum. No terceiro filme exibido – “O Conformista”, de Bernardo Bertolucci – havia cenas de homossexualismo. “Era o bastante para que a plateia reagisse com piadas, gracejos e outros comportamentos não convenientes para uma sessão de arte”, notava Leandro. É de se imaginar qual seria a reação do público – e da cidade – se aqueles filmes da estreia fossem exibidos hoje num cinema da cidade com apoio da Prefeitura.

A Comissão de Cinema na época buscou a cooperação dos líderes universitários (do teatro, dos esportes etc) e das diretorias dos centros acadêmicos e diretórios, alertando para a importância da conquista desse espaço cultural. No prazo de alguns meses o público se adaptou à temática da “sessão maldita”.

Em 1976, a roda viva dos entraves financeiros e burocráticos da Comissão Municipal “levava a roseira pra lá”, colocando em risco a continuidade do projeto, que precisaria ampliar suas edições, dada a aprovação do público.

A Comissão de Cinema propôs então a realização conjunta das sessões em parceria com a Universidade Federal, que já contava com um setor cultural vinculado à sua Divisão de Informação e Difusão Cultural (hoje reitoria de Pró Extensão). Na prática, a realização ficava por conta do Setor Cultural da UFSCar.

“Uma vez instalada e em função do setor cultural, gradualmente as atividades ligadas a cinema se expandiram estruturando-se um núcleo de cinema dentro do setor”, informava o professor Leandro em artigo publicado em 1993.

No ano de 1977, as sessões malditas passaram a ser semanais. Criaram-se a “Sessão dos Grandes Temas”, “Sessão dos Grandes Nomes do Cinema”, “Sessão Brasil”, “Sessão Debate” e criou-se no primeiro semestre de 1980 o Grupo de Estudos Cinematográficos.

 

A sessão maldita de São Carlos se difundiu e animou universitários de outras cidades, como Araraquara, Bauru e Uberaba a fazer promoções semelhantes, com a colaboração do incansável José Sidney Leandro.

“No cinema repleto de estudantes universitários eu me sentia um estranho no ninho. Era uma dessas sessões malditas com filmes escolhidos pelo Departamento Cultural da UFSCar e a fita, que terminou à meia noite, era Luzes da Cidade, com Charlie Chaplin”, escreveu Eduardo Kebbe, na crônica Sonho Bom, publicada no jornal  A Folha em de julho de 1978. “Ora, segundo os poetas mais desvairados, meia noite é uma excelente hora para a gente se sentir, algumas vezes, ébrio de literatura”.

Em 1993, vinte anos depois da estreia da sessão maldita em São Carlos, o professor Leandro também coordenava as sessões de cinema de arte do SENAC Bauru e da Casa de Cultura Professor Vicente de Arruda Camargo, em São Carlos. Na ocasião, a sessão maldita era exibida as terças e quartas no Studio I, em produção da Pro Reitoria de Extensão da UFSCar, com coordenação de Leandro e colaboração dos membros da turma adiantada grupo de estudos cinematográficos da UFSCar, Elen Esteves Rincon, Fabio José Rodrigues Lopes, Paulo Sérgio Rodrigues e Roberto Gambaroto, e dos professores Marilia Leite Washington e Dagoberto Recucci, de Celso Fernando Osio e de Carlos Santa Maria, com apoio cultural da Video 21.

INCENTIVADOR DAS ARTES

Sobre o coordenador da Sessão Maldita, a propósito de uma exposição de arte na Galeria Itaú em 1984, o cronista Kebbe escrevera: “As artes circulam em seu sangue, em suas veias, no seu cérebro, na sua maneira de ser e agir; incentivador dos vários gêneros de arte, seu nome se inscreve entre os mais talentosos artistas são-carlenses”.

José Sidney Leandro, nascido em Sertãozinho e radicado em São Carlos desde 1963, de cabelos brancos longos e basto bigode, cultivava a modéstia e se dedicava com intensidade a tudo o que se propunha a fazer. Premiado em salões importantes, era, na definição do cronista, “comedido nas palavras e nos gestos, despojado dos estrelismos que assolam valores menores”.

“Leandro bem que merecia estar ocupando um lugar público de liderança cultural digno do seu talento e de sua versatilidade, já que tanto tem dado de si para a cidade e sua gente”.

Conheci de perto ao entusiasmo do professor quando trabalhei como repórter no jornal “Correio de São Carlos”, onde ele mantinha em 1980 a coluna “Filmes & Arte” em que apresentava e comentava a programação semanal dos filmes em exibição nos cinemas locais e também fazia a divulgação das exibições da “Sessão Maldita”.

Ao falecer em 29 de abril de 1995, aos 60 anos, Leandro deixou um legado importante para a cultura, as artes e a educação do país. Desenhista privilegiado, formado em Belas Artes, Pedagogia e Orientação Educacional com curso de especialização em Didática e título de mestre com a tese “O Cinema como meio de Formação Cultural do Universitário”, foi professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) a partir de 1976, lotado no Departamento de Metodologia de Ensino do Centro de Educação.

EDUCAÇÃO ATRAVÉS DAS ARTES

Como educador em arte na UFSCar, desenvolveu programas como "Educação através das artes" e de apoio às cooperativas de artesanato da Agrindus e Crutac (Centro Rural Universitário de Treinamento e Ação Comunitária), ambas em São Carlos (em Santa Eudóxia por oito anos e na periferia da cidade por três anos).

O criador da sessão maldita foi também fundador do Teatro Universitário da UFSCar e coordenador do Grupo de Pesquisa Plástica e de Estudos Cinematográficos da Universidade.

“A sua história pode ser contada em poemas - quem sabe com ela haveremos de compreender que somos um elo da universal corrente”, escreveu em 1996 o professor Antonio Carlos Vilela Braga, que o definiu como “um artista notável”.

“Poucos homens atingem sua época e são capazes de compreender e viver intensamente o seu tempo; são raros os que ousam desafiar a mediocridade e exercitar o inconformismo com o estado das coisas”, sentenciou Braga. Pois José Sidney Leandro fez mais que isso. “Seu trabalho foi uma amálgama de coragem - versatilidade e persistência. Somente quem o acompanhou, teve a exata noção da grandeza da sua obra. Uma grandeza que o passar do tempo reforça e agiganta”.

A Lei 13.942 de 8 de dezembro de 2006, atribuiu o nome de José Sidney Leandro à área institucional cedida pelo governo municipal para a instalação de um Parque das Artes no Parque Faber, zona oeste da cidade.

(*) O autor é cronista e assessor de comunicação em São Carlos  (MTb 32605) com atuação na Imprensa da cidade desde 1980. É autor do livro “Coluna do Adu – Sabe lá o que é isso?” (2016).

Esta coluna é uma peça de opinião e não necessariamente reflete a opinião do São Carlos Agora sobre o assunto.

Leia Também

Últimas Notícias